8 de mai. de 2007

Tigre onírico

O vento entra pelo meu quarto, atravessa o corredor e sai pelo quarto da minha filha. Só temos duas janelas, dois olhos imensos para fora. Nada mais. Vivemos aqui: eu, a pequena e o tigre. Cheguei antes, no quarto grande, com cama de casal, um imenso guarda-roupa, cômoda, espelho e outras coisas que nunca soube para que serviam. Depois que ela foi embora, não me interessei mais pela utilidade dos móveis. Durmo apenas de um dos lados do colchão, uso uma metade do guarda-roupa e deixo sempre duas ou três gavetas vazias.
Depois veio a pequena e entendi por que tínhamos dois quartos e usávamos só um. Voz fina, candura doce, minha filha tem seis anos, segundo ela. Ela também tem uma cama com gradinhas, para não cair durante o sono, e um pequeno guarda-roupa, com roupas pequenas e outras coisas, que nunca soube para que serviam. Há prateleiras, cheias de brinquedos largados. A pequena cresce e cansou das traquitanas. Entediada, se apaixonou pelo filhote de tigre. Assim ele chegou. Mas a casa tem só dois quartos. E a cama de casal é ocupada por mim e pelo vazio.
No primeiro dia, o tigre só ronronou, tomou leite e dormiu na cozinha, feliz como um gatinho mal-crescido. Brincamos tanto, eu, o tigre e a garotinha que anda pela casa. E dormimos cansados. O tigre acordou disposto, do tamanho de um gato. Então a casa começou diminuir. Já não quis dormir na cozinha. Preferiu o sofá da sala. Brincamos, nós três: eu, o tigre... As unhas afiadas arranharam meu rosto e a mão da garotinha. Fechamos a porta, fiz um pequeno curativo e fomos dormir.
O tigre nos acordou, com um barulho estranho, mais grave que um ronronar, mais suave que um rugido. Tinha o tamanho de um cão vira-lata e ficou preguiçoso. Não quis brincar, mas aceitava carinho. Afagamos, nós três: eu, a garotinha no espaço vazio da minha cama. O tigre andava por toda casa, arranhou os guarda-roupas e espalhou minhas camisas pelo chão, estraçalhando algumas, enquanto corria pela casa. A pequena está apaixonada pelo felino. Sinto ciúmes.
Não sei onde o tigre dormiu. Não aceita mais nossas ordens. De manhã, ouvi um barulho. O tigre já tem o tamanho do Oto, o cão da mamãe. Arranhava o sofá. Fiquei olhando. Por fim, destruiu o móvel e isso foi bom, por que a casa já não comportava mais objeto tão grande. Não quis carinho e recusou o leite. A pequena brinca com ele, mas, de mim, não aceita nem um afago. Rolam pela casa, em perseguição. Derrubam objetos. Então me preocupei. Um tigre, pela casa, não sei se foi boa idéia. Ainda mais com a casa pequena e diminuindo. Talvez um peixe fosse melhor. Mas a pequena amou o tigre, tanto que começou a dormir com ele, no quarto. Ela deita na barriga peluda e dorme.
O tigre acordou cedo. A pequena sonha. Na cozinha, o felino olha estranho para mim, não bebe o leite pronto no prato e não come nada. Tem o tamanho de um pastor alemão. Ruge para mim. Fico longe. Mas a pequena entra na cozinha, o tigre se acalma e corre para ela. Sente ciúmes de mim. E fome. Sinto-me um intruso, volto ao quarto e durmo, o resto do dia.
De manhã, o tigre está adulto, lindo, exuberante. Não brinca mais com a pequena, para não machucá-la. Protege-a de mim e não a deixa ver TV. Quer atenção total. Não discuto com o tigre. Eles sabem o que fazem. Deixo-os sós e volto para o quarto, para ler sobre tigres, nos velhos livros que guardo sempre no lado vazio da cama. Fico o dia todo trancado. A sala ficou pequena demais para nós três. Leio até adormecer. Sonho que acordo, de súbito. É meia-noite. Caio no sono de novo.
Sonho com um tigre, nosso tigre, do tamanho impressionante de um pôney. Ele acorda de madrugada e se esgueira, silencioso, pelo corredor. Não me vê, por que é meu sonho. Ele empurra a porta e acorda a garotinha, minha filha. Ela fala com ele, mas pouco. Silenciosamente, ele a devora. Ela grita, no começo, mas depois, apaixonada pelo tigre, deixa. Tento fazer algo, mas, no sonho, não consigo me mover.
Acordo assustado. Preocupado com a minha filha, saio da cama de solteiro, por fim, e vejo o sofá arranhado. Corro pelo corredor. Abro a porta do quarto menor. Minha filha sumiu. O tigre também. O quarto está totalmente vazio. Os móveis e brinquedos foram com o vento. Não há marcas de móveis pelo chão. Apenas pêlos de tigre espalhados no carpete. (12 de agosto de 2005)

Trilogia dos tigres
Senhor Devaneio
Os tigres na cidade

4 de mai. de 2007

Você não tem um Nike Shox

Frases que as crianças dizem: “eu tenho, você não tem”. Crianças são fofas, lindas, ingênuas... e cruéis. Imaturas, adoram afirmar sua posição financeira e social perante outras crianças. Ah, crianças...
Buscar distinção e identificação é próprio do ser humano. Cada um sustenta e se orgulha dos seus gostos, mesmo com referências culturais estranhas, que identificam com um grupo, mas distinguem de outro. Ou, na moda, de roupas diferentes, iguais as dos meus pares e diferentes das roupas dos outros, daqueles com quem não quero parecer.
Agora a distinção ganhou outros contornos, fascistas como convém. O apartheid é estético e econômico. Não se trata mais das diferenças apenas, de pessoas que buscam lugar no mundo, mas da distinção entre quem tem e quem não tem. Um Nike Shox custar U$120 nos Estados Unidos pode fazer algum sentido; custar R$500,00 no Brasil é uma tragédia, um atentado contra a imagem de um país que se julga fraterno e acolhedor.
A distinção agora separa quem pode pagar dos que não podem, os cidadãos de bem dos outros, dos fracassados. Um Nike Shox no pé diz, subliminarmente: “Você não tem um Nike Shox; eu tenho”. E a imaturidade infantil foi explorada e convertida em princípio justo.
Os advogados da coisa vão argumentar que o tênis é superior e que sua qualidade é o que determina o preço. Besteira. Poderia custar menos da metade, com a mesma qualidade. É a lógica Vítor Hugo invadindo outras searas. Uma VH diz quem você é. Quem compra sabe. Quem vê admira, inveja ou sente ódio. Poucos conseguem passar infensos ao valores propagados pela Indústria Cultural. O Nike Shox, as camisetas Diesel, as calças Capoani separam, economicamente, a sociedade, realizam, democraticamente, um apartheid, definem os arianos.
As criancinhas que não tinham cresceram. Querem o Nike Shox. Algumas roubam; outras falsificam; algumas trabalham e pagam, com sacrifícios, para parecer o que elas não são. O Nike Shox e seus assemelhados respondem pelo ódio de classe de nosso tempo. Numa sociedade fraterna, a idéia de pagar tanto por um tênis deveria ser um anátema.

24 de abr. de 2007

Mostrengo nu

O sistema de eleição de vereadores e deputados no Brasil é uma invenção única. A eleição é proporcional, em lista aberta, um esquema que, salvo engano, não há democracia estável no mundo que utiliza. Os modelos mais usados são as listas fechadas e as eleições distritais. O sistema do Brasil é uma jabuticaba. Só existe aqui e é tão incompreensível que apenas os muito iniciados em política o entendem.
Explico: o eleitor vota num determinado partido e, dentre os candidatos deste partido, escolhe um. Pode, também, votar apenas no partido, sem indicar nenhum candidato específico. A divisão das vagas é feita proporcionalmente aos votos do partido ou da coligação. Ou seja, se um partido tiver, na soma de todos os seus candidatos e da legenda 25% dos votos, terá também direito a 25% das vagas na casa legislativa em disputa. Os mais votados daquele partido ficam com as vagas, ocupadas por ordem de votação. Assim, com a votação recorde de Clodovil (493.951), o coronel Paes de Lira (6.673 votos) se elegeu deputado federal, pelo PTC, que garantiu duas vagas.
A população não entende como alguém se elege com menos de 7 mil votos e outro não se elege com mais de 50 mil, como aconteceu em São Paulo. A população não entende o sistema como um todo. Perante a lei, a mandato do coronel Paes Lira é plenamente legítimo. E é razoável que 500 mil eleitores, que votaram em Clodovil e Paes Lira, tenham dois representantes.
A declaração do TSE, diante de um pedido dos Demos (ex-PFL), de que o mandato é do partido é a leitura mais clara e simples da lei. A eleição é em lista. As vagas são dos partidos. Mas a decisão expõe uma democracia de fancaria. A população normalmente nem sabe em quem votou, por conta da dispersão de candidatos. Sabe menos ainda em que partido votou. Compreende ainda menos como seu voto, num amigo próximo, possa pertencer a um partido que nem conhece e como pode ter eleito outro sujeito.
O sistema eleitoral é despolitizando. Impede que as eleições proporcionais debatam os legislativos, torna a crítica inútil e pune os desvios vagamente. Um deputado que seja pego em claro ato de corrupção normalmente tem apenas sua imagem manchada e somente após uma campanha vigorosa da imprensa contra ele, nem sempre motivada por razões nobres. Seu partido não paga. Como ele precisa, proporcionalmente, de um número pequeno de votos para se eleger, a rejeição não é o fator mais relevante na sua eleição, senão Maluf não teria a votação recorde que teve.
O sistema em si é horrível. Desmonta os partidos, desvincula o voto da representação parlamentar, impede a fiscalização do eleitor e da imprensa e torna a discussão dos legislativos casuísta e fisiológica.
O fato da população desconhecer o sistema torna a nossa democracia um jogo que o eleitor, em geral, não joga. Se o TSE não fez as leis e cumpre o seu papel ao zelar por elas, isso não o livra da responsabilidade pelo desconhecimento do sistema. A cada eleição, o Tribunal gasta seu tempo de campanha de TV para pedir por um vago voto consciente, pedir que as pessoas votem, incutir no povo que o poder emana dele. Podia explicar como um deputado é eleito. Nunca fez isso.Na marra, por força de um processo jurídico, o TSE agora diz que o mandato é do partido. Deveria ter dito bem antes. Antes do voto, antes das distorções na nossa representação parlamentar. E, sobretudo, antes que espertos, como o Demo, que sempre usaram a ignorância da lei para fazer bancadas, resolvessem usar, espertamente, a lei a seu favor.

11 de abr. de 2007

Na alegria, na tristeza

Meu amor de hoje é meu amor de sempre, meu amor de ontem, meu amor de tempo indefinível, meu amor de amanhãs e de manhãs de preguiça. Meu amor não cessa. Meu amor é meu desejo, minha libido, mas meu instinto atira para direções diversas e recusa qualquer contrariedade. Desejo meu amor, mas não é isso que o define.
Meu amor me dá ombro, me faz sentir acompanhado neste mundo, me acalenta, me cuida, mas, tempos em tempos, meu amor se nega. Sinto-me só. Meu amor ri, meu amor fala, meu amor dança, mas, por vezes, cala muda e chora. Meu amor é de alegrias e de tristezas.
Não seria meu amor se eu não o aceitasse, nos dias de sol e nos dias de chuva. Se não visse poesia no cotidiano, se não desejasse os lençóis limpos e perfumados da nossa cama todos os dias. Não é amor o amor que se consome em prazer. E se extingue, ali mesmo. É amor por si mesmo. É amor de paixão, lindo e breve. Meu amor pode acabar, mas não tem fim.
Amo meu amor de paixão, mas por vezes me aborreço. Já quis amores mais fáceis, mas já aceito que os amores são difíceis. Amo meu amor difícil. Todos são assim se são amor.
Já quis fugir, já quis abandonar, mas o amor é isso mesmo. Um dia após o outro. Sei que a alegria imensa que sinto ao lado dela impõe o risco de me ver triste pelas mãos dela. Sei que amor é uma arquitetura, um projeto que se constrói tijolo a tijolo.
Meu amor tem nome: Giovana. Meu amor é meu destino.