31 de ago. de 2006

Rosa azul

Te encontro agora em lances fortuitos ou casuais. Pequenos detalhes que antes poderiam significar nada ganharam sentido. 8 de março é o Dia Internacional da Mulher. Fui incumbido, então, de fazer um boletim comemorativo da data. Um dos textos que deveria escrever seria uma homenagem a uma mulher notável. Uma militante de esquerda que nasceu em 1870 e morreu em 1919; que foi intelectual do movimento proletário polonês e alemão, fundadora do PCA – Partido Comunista Alemão; que polemizou com Lênin sobre os destinos da revolução internacional; que lutou e morreu pelos trabalhadores. Seu nome: Rosa.
E corri escrever uma homenagem biográfica a Rosa Luxemburgo, não sem pensar no sentido que as rosas ganharam para mim desde que te vi, um dia, rosa azul da minha busca utópica.
Os cabelos loiros do Pequeno Príncipe fazem com que, para a raposa, a cor do trigo tenha algum sentido. Sempre gostei de flores. Hoje, mais que nunca, amo flores e uma flor em especial.

(carta escrita em 1997)

28 de ago. de 2006

Botões de rosa

A essa hora, você já deve ter recebido os botões de rosa. E eles talvez já tenham, silenciosos, começado a abrir. Mire-os e não verá movimento. Mas o movimento existe, imperceptível e surdo. Eu o calculei. Estas flores desabrocham em meu nome, por ti.
Um passo após o outro, tenho tentado ser meticuloso, sem cometer erros. Tento usar minha sensibilidade do mundo feminino para trazer-te a mim. Tento dizer o que é indizível. Que, se quero crer que meu destino é te amar como homem, me entrego da forma como as mulheres se entregam ao amor. Tenho muito medo do medo.
E já me vejo enredado nestes laços, nestes planos, nesta vida futura que só vislumbro. Me encontro com saudades dos dias santos. E todo dia será santificado se eu estiver do teu lado. Mas, sabe, tenho medo quando as coisas caminham assim, tão calmamente, como se não tivessem outro rumo a seguir. Tudo bem, por enquanto. Tudo calmo, como se a calmaria antevisse um maremoto.
Minha vida afetiva tem sido atribulada. Não quero errar de novo. Por isso, tenho medo, mas não desisto. Uma flor tem sido meu projeto mais acalentado nestes dias em que vivo sob pressão.

(carta escrita em 1997, após enviar botões de rosa em vias de desabrochar)

23 de ago. de 2006

Desejo

O desejo disse:
- Vá...
Eu não quis.
Ou quis, por que o desejo sabia.
Não fui.
Ele argumentou:
- És livre.
Pois sou mesmo.
Então, não medi.
Caminhei.
O desejo riu,
por que o desejo é o desejo.
Ele não aceita não.
É inofensivo, mas repete
sempre, a mesma frase.
Um dia, você o ouve.
Quando ele fala alto, porém,
todo resto parece mudo.
O desejo é o senhor de um reino sem muros.

14 de ago. de 2006

Da distância

Chove! As gotas batem na minha janela, fazendo um burburinho bom para ficar debaixo das cobertas e essas coisas gostosas que a gente pode fazer em casa, em nenhum outro lugar. As gotas escorregam pelo vidro, vão se juntando, numa previsível marcha. Miro-as.
Não sei por que, mas estas coisas botam a gente emocionado prá diabo. Acho que é esta mania de pensar em como seria bom se você estivesse aqui.
Chove! Quero cobertor, teu colo, teu rosto colado ao meu, tua boca, teu corpo quente. E, você, impassível, não sente, não vê, não mede a saudade que sinto, o espinho que carrego. Vem me embalar, cumprir, por fim, minha sina de estar indefeso em suas mãos, criança que cresceu e que ainda chora com cenas bregas de amor rasgado. Vem respirar o ar que respiro, tornar momentos patéticos instantes grandiosos.
Das desgraças do amor, a distância é das mais severas. E, no entanto, viver com tal fardo é que faz os escassos segundos em sua presença tão importantes.
A perspectiva de futuro não é muito diferente disso. Por muito tempo, se tudo der certo, te verei em fins de semana e nem mesmo em todos os sábados e domingos. De certa forma, é ruim. Mas pode nos ajudar a amar, mais e mais, estarmos juntos.

(carta de 1997)

11 de ago. de 2006

Ícaro, de Will Eisner

Para Gi

Sabia voar. Claro que sabia voar. Nunca tinha saído do chão, mas quando se lançava no ar, de braços abertos, ficava sem tocar a terra por meio segundo. Nunca mais que isso. O problema era a falta de arranque. Com ele, planaria pelo céu azul.
Não precisava nem de testes, nem de cálculos, nem de métodos. Ela sentia, por dentro, que sabia voar. Sentia-se solta, planando no ar vez em quando. Tinha a estrutura dos pássaros, com ossos leves.
E como sabia bem tudo isso, vivia feliz. De tantos, o destino fizera dela um ser especial, dera a ela o dom de voar. Vivia os dias assim. Para que olhar para o lado, se preocupar com as coisas miúdas, problemas do dia? Para que pensar na casa, que, de tão pouco zelo, ficava cada dia mais desorganizada?
Sabia voar.
Para que pensar em toda gente que falava com ela, se ela nem ouvia, apenas percebia que falavam? Falavam o quê? O que importa?
Sabia voar.
Para que pensar nos amigos antigos que sumiam dia a dia, sem que ela soubesse por quê? Para que se preocupar se os amores, aventureiros, não tinham futuro?
Ela sabia voar.
Qualquer coisa, subia alto numa montanha, pulava e partia, batendo os braços. Os problemas ficariam no chão, pesados. Quem sabe voar não precisa se preocupar com o futuro. O futuro de quem sabe voar é voar. E é o chão que sustenta todos os problemas. O ar não.
Ficava a pensar nisso, pés no chão, mas a cabeça já voando. Ela percebia que estava longe, que via o mundo por cima. Nestas horas, sua certeza aumentava. E aumentou tanto que um dia começou planejar. A colina alta, o caminho íngreme, mas não teve dúvidas.
Num dia de sol, com pouco vento, pôs se a subir, a pé, pois quem voa não carrega pertences. Cansou, parou, tomou água, não quis comer para ficar mais leve, e continuou a subir. Subiu, subiu, subiu... O dia já findava quando atingiu o topo e encontrou o ponto perfeito para seu salto, para ganhar o impulso que faltava lá embaixo. Descansou um pouco, mas não quis perder tempo. O sol baixo já anunciava seu poente. Livrou-se, tal qual Diógenes, o filósofo, da cumbuca que trazia para beber água. Não sentia fome, pois confiava. Pássaros sempre têm o que comer.
Olhou o sol, mirou o lugar do impulso e planejou o que faria quando chegasse ao destino do vôo, mesmo que não soubesse onde era. Então, sem vacilar, correu e pulou, de braços abertos.
A 800 metros do chão, tentou planar, apenas esticando as mãos. Até achou que planava, mas, 100 metros abaixo, já sabia que continuava caindo.
A 700 metros, lembrou que os pássaros sempre batem as asas antes de planar e se pôs a bater os braços. Sentiu que voava, mas 100 metros depois, percebeu que não.
A 600 metros começou a pensar no que podia estar errado, pensou que o vento era pouco, mas não seria obstáculo. Quem já ouviu falar de pássaros que só voam em dias de ventania? Então lembrou das roupas, é claro. Qual alado usa roupas? Começou a se despir.
A 500 metros, tinha tirado a calça e o tênis. Já se sentiu mais leve.
A 400 metros, tirou as roupas de cima e se sentiu bem. Muito bem.
A 300 metros, voltou a bater os braços. Em vão. O cabelo longo lhe atrapalhava e a velocidade era muito alta, mais de 60 quilômetros por hora, pensou. Amarrou o cabelo, pois já não tinha nada com que prendê-lo.
A 200 metros, ainda sem voar, pensou que talvez estivesse errada. Talvez não pudesse voar e tivesse sido prudente trazer um pára-quedas. Mas não se assustou, pois tudo haveria de ter solução.
A 100, depois de pensar rápido, lembrou que o chão nunca tinha lhe feito mal. Convenceu-se que não seria agora, com ela tão leve, tão ela, tão confiante de si. Foi só por isso que a preocupação, leve e ligeira que passara pela sua cabeça, desvaneceu.
Então, sorrindo e nua, abriu os braços para carinhar o chão amigo.

10 de ago. de 2006

Da impossibilidade do beijo

Sento na cadeira, depois do banho, cabelo molhado e samba-canção de seda, e fico a pensar-te. Nesta hora em que o dia fica calmo, a mente já não se ocupa de afazeres tais que a distraem de ti. E volto, como sempre volto, a pensar em você. Não, assim, como uma imagem de santa, uma epifania. Mas como uma mulher sem matéria, sem cheiro, sem corpo, mas que sei existir. Por isso insisto.
E da tua imaterialidade nestes lugares por onde ando, vou tecendo história, planos, momentos, vida a mim legada e contigo dividida. Vou te imaginando em cada pequeno detalhe. Vou calculando suas reações.
- Será que ela gostaria?
- Será que ela riria?
- Será...
- Será...
E de "serás" vou vivendo ao teu lado.
Tudo isso, pela impossibilidade do beijo. Pois se o beijo fosse possível, então eu teria-te, mulher com corpo, cheiro e matéria. E se o beijo fosse negado, então partiria, assim, como quem parte sem corpo, sem cheiro, sem matéria.
O beijo é um passaporte, uma ponte, uma aliança. É, de certa forma, um consentimento aos exageros do amor. É uma garantia. O beijo é poder dizer, nos teus ouvidos, atrocidades como: "nunca mais te deixarei partir".
Sem o beijo, ainda não há nada.
Todo o meu cortejo, as estratégias de conquista, as flores, as cartas, as palavras medidas ainda não atingiram o objetivo pensado. Até lá, vivo esta angústia. Até lá, planejo o momento do beijo possível. Cobiço tua boca delicada, tua voz nos meus ouvidos, tua mão na minha.

(carta escrita em 1997)

7 de ago. de 2006

Minha alegria para te ferir

Quando eu estava no chão, ela riu. Só me levantei para cessar aquele riso. Mas ela continuava lá, com ar superior. Foi só por isso que sorri, com os dentes partidos. Ela olhou para mim:

- Caminha!

Obedeci, porque a ordem era um desafio ou porque me acostumei a me mover pelas palavras dela. Virei as costas, não olhei para trás, mas... como senti vontade! Então fui curar as feridas, não porque quisesse. Por mim, ficava ali, sem nada fazer, entregue. Vi no rosto dela certa felicidade de me ver cheio de hematomas. Ela achou engraçado meu sorriso torto, meu rosto inchado. Mas eu vi como a incomodou que eu risse. Foi só por isso que sorri.
Um dia, refeito, eu a encontrei, na rua, mais humana, mais comum, igual a mim. Ela me viu. Ficou assustada. Eu ali inteiro, eu que tinha apanhado tanto, não haveria de ter esquecido. E não esqueci. Meio sem jeito, ela tentou fingir que não tinha me visto. Cheguei perto, armei meu melhor sorriso.

- Bom dia. Tudo bem com você?

Ela respondeu sem jeito, com entusiasmo forçado:

- Sim... E você?

Esperei tanto para dizer isso, para me vingar. Não tive dó:

- Huuum... Estou muito feliz.

3 de ago. de 2006

Jornalismo menor

Uma das maiores dificuldades na defesa da regulamentação da profissão de jornalista tem sido a resistência de segmentos da própria categoria. Normalmente, são segmentos minoritários, mas, ao se posicionarem publicamente, transmitem a idéia de uma categoria dividida sobre o tema. Para piorar, muitos jornalistas com maior visibilidade, seja pela carreira longa seja pela posição de chefia que ocupam, fazem parte deste segmento.
Estes jornalistas levantam uma série de argumentos, difíceis de sintetizar, mas é possível enxergar os eixos mais reincidentes. Normalmente, contra a regulamentação baseada em uma formação específica, opõem uma série de reducionismos. Os principais são:
1) Redução do todo às partes: há muitas atividades desempenhadas por um jornalista, como redação, pauta, edição, fotografia, assessoria. Isso é comum em outras profissões, como a dos médicos (ortopedistas, cirurgiões, anestesistas, dermatologistas) ou dos advogados (criminalista, juiz, promotor, delegado). Não é difícil, em nenhuma destas profissões, dominar partes do conhecimento. No jornalismo, é possível que alguém aprenda a redigir um texto com lead em pouco tempo. Isso serve como argumento para dizer que quem sabe fazer isso é jornalista. O argumento não convenceria nenhum médico ou advogado diante de um sujeito capaz de diagnosticar alguns problemas de pele ou de fazer uma petição na Justiça do Trabalho. Entre os médicos e advogados, a competência parcial não faz um profissional; faz um charlatão. Entre os jornalistas, há quem defenda que a parte é o todo. Aplicada a mesma lógica à medicina, um charlatão bem sucedido junto ao público fazendo diagnósticos de problemas de pele seria um médico em pleno direito de exercer a medicina.
2) Redução das práticas profissionais a técnicas: o processo de tecnificação do texto, a partir de 1951, no Diário Carioca, e de 1956, no Jornal do Brasil, afastou o jornalismo da literatura e vulgarizou procedimentos do jornalismo estadounidense. A isto, como conseqüência, sobreveio uma noção de que o texto, tecnificado, é resultado de pura técnica. No entanto, a noção de técnica não explica, no todo, as práticas jornalísticas. Por esta concepção, o jornalismo deveria ser pensado em termos de eficácia, produtividade e padronização na obtenção e tratamento de informações. Não se trata disso. Checar informações, por exemplo, não é apenas um procedimento técnico, mas uma prática profissional eivada de valores jornalísticos e deveres éticos. Ou seja, a checagem não é apenas um procedimento de obtenção de produtividade. É, antes, um dever profissional, respaldado por uma categoria. Dever ético em duas pontas: a da fonte e a do leitor. Assim, o procedimento não pode ser substituído, pelas empresas, por outro que seja mais eficiente. A prática, não sendo técnica, não pertence à empresa, mas aos jornalistas e ao seu universo de valores. O texto não pode resultar de um mero preenchimento de lacunas, por mais que a cultura e manuais tenha contribuído, e muito, para esta noção.
3) Redução das competências profissionais ao talento para a escrita e à propensão à leitura: velhas práticas assombram o jornalismo. Se, no final do século XIX até boa parte do XX, jornalismo e literatura caminhavam juntos, sendo homem de imprensa e literato funções intercambiáveis, isto já não é mais válido. Não basta mais saber escrever e ser erudito para ser jornalista. Isto tanto se deve à complexidade que os instrumentos utilizados pelos jornalistas adquiriram, quanto à própria complexidade social e ética e hegemonia que os mídias ganharam no nosso tempo.
4) Redução do jornalismo como deve ser ao jornalismo como ele é: esta redução é das mais falaciosas. Se nas três anteriores é possível antever uma discussão sobre o que é jornalismo, nesta há apenas um raciocínio falso. A profissão deveria ser algo acessível a qualquer sujeito, com formação ou não, por que qualquer um faz jornalismo com a qualidade que ele é feito hoje. Apliquemos a lógica a outra área para demonstrar seu absurdo. Se os engenheiros, reiteradamente, construíssem casas e prédios que desabassem, por esta lógica construir casas que desabam seria função típica de um engenheiro. Absurdo. Quando se trata do jornalismo, vale. Quem defende isso? Qualquer um que diga que não precisamos de diplomas para exercer o jornalismo por que a qualidade do ensino é muito baixa. Então, se os jornalistas estão sendo mal formados, para que faculdade? Ser mal formado é tornado, portanto, inerente ao jornalismo. A melhoria da qualidade de formação é descartada. Corta-se a cabeça por causa de uma enxaqueca.
5) Redução do jornalismo à opinião: está também é falaciosa, mas fundamenta a liminar concedida pela juíza Carla Rister. O jornalismo, há muito tempo, não é o exercício diário da opinião. Aliás, emitir opinião não é função jornalística. É verdade que alguns jornalistas têm o estatus de supercidadãos, pelo direito de opinarem, muitas vezes sobre tudo. No entanto, supers ou não, opinam na condição de cidadãos, a quem cabe o direito legítimo de opinar. Jornalista faz análise, explica, busca informações para elucidar algum acontecimento. Quando opina, já não exerce mais função jornalística, o que não significa que não possa opinar. Função jornalística é editar opinião, buscando pessoas respaldadas para falar ou representantes de correntes importantes de pensamentos. Nisto, exerce a função mais importante do jornalismo depois de informar: viabiliza o pluralismo liberal de opiniões.
Se não for reduzido, o jornalismo é, necessariamente, atividade sustentada em sólida formação teórica e ética e exige competências profissionais sólidas. No mundo, esta tendência é evidente, em vários formatos, na maioria deles sem a exigência legal de diploma, é verdade. Onde existe jornalismo, no entanto, é preciso jornalista. O problema é que no Brasil os jornais produzem jornalismo de vez em quando, para justificar o resto do tempo em que estão fazendo política, muitas vezes das mais baixas. Com tão pouco jornalismo ou com tantos simulacros de jornalismo, são necessários poucos jornalistas ou apenas simulacros de jornalistas. Essa é a questão de fundo. No Brasil, os jornalistas querem fazer jornalismo; as empresas jornalísticas, nem tanto.