20 de out. de 2006

Mademoiselle

Acordo desesperado. Sonhei contigo e não lembro do sonho. Tento dormir, mas a mente já alucina. Então revolvo cacos de memória, te procuro dentro de mim, tento associações, apanho fragmentos. Aos poucos, vou lembrando.
Tudo começa ficar claro. Te vejo, uma estranha para mim, e dirijo a palavra a ti. Te chamo de "mademoiselle". Então lembro que je ne parle pas français. A memória se emenda. A primeira palavra que te disse, na vida, foi "senhorita". Você, sim, fala francês. Te chamam Mille, redução sabe lá de que jeito de "mademoiselle".
Então me assusto com os exageros do sonho. A primeira palavra que te disse foi a palavra certa, palavra que já nos ligou, desde o início. Depois, o sonho continua cheio de incoerências, por ser perfeito demais. Te vejo mais vezes. Falo contigo. Te peço o telefone. Ligo, diversas vezes. Te espero na saída do trabalho, vindo do nada. Você liga de madrugada. Te levo flores. Te descubro; e você, a mim. O sonho é como um roteiro de cinema, de uma história de amor feliz. Por isso, o sonho é estranho. Só o sonho e o cinema podem conter tanta perfeição.
De manhã, entre poeira onírica, resto de sono e preguiça, não distingo real de irreal.
A vida é por um triz. Ela poderia ter passado por mim, sem que eu a visse. Mas aconteceu diferente. Aconteceu de um jeito que as pessoas conhecem bem: como se houvesse um plano, como se não fosse tudo acaso, como se o destino se revelasse e quisesse nos presentear.
Acontece com muita gente. É um sinal do acaso, do deus acaso. Às vezes, uma palavra pequena serve, um gesto tolo aproxima, como se tudo estivesse já decidido. Aconteceu como acontece a toda gente: uma história perfeita. Aconteceu como acontece quando o coração quer ver. O meu não está mais cego.
Mas ainda não lembro do sonho da última noite, quando sonhei com ela. Eu sei que sonhei com ela, por que pensar nela é o trabalho mais usual da minha mente. Mas deixa... Um dia acordo com ela do meu lado. E vou pedir a Deus que não me acorde, apesar de já estar acordado. Então, vou enganar o senhor sonho. Vou pisar no seu mundo de olhos abertos.

7 de out. de 2006

Argumento único

Em política, repetir o mesmo argumento sempre é muito útil. De tanto repetir algo, tal coisa parece verdade, ainda que pouca relação tenha com qualquer coisa no mundo. Além disso, o argumento único é fácil de entender.
Uma vez, em 1989, pergutaram o que Collor responderia se perguntassem sobre qualquer outro tema que não os marajás. Ele disse que argumentaria qualquer coisa e depois voltaria aos marajás. Collor foi acusado de usar um expediente nazista, mas a crítica nunca alcançou repercussão. Hitler fazia o mesmo. Pouco importa se os problemas do Brasil não se resumissem aos marajás, a eles cabia toda culpa. Pouco importa se a acusação aos judeus lhes impultasse coisas totalmente estranhas a eles, os judeus eram os culpados de tudo.
O argumento único é a morte da razão, é atribuir a um culpado, inimigo maior do Estado, a responsabilidade por todas as mazelas. Evidentemente, a realidade é mais complexa.
FHC e Alckmin, ventríloquos um do outro, repetem, como uma pregação collorida ou nazista, que o mal atávico dos petistas, a desonestidade, é responsável por todas as mazelas do Estado. Repetem que "a patota do PT" faz o Estado ser ineficiente e corrupto. Não há o que comprove tal ineficácia, exceto os problemas que o Estado brasileiro carrega há anos e que ainda precisam ser superados, como, por exemplo, as filas no INSS. A comparação, em termos de gestão, entre FHC e Lula mostra coisa muito distinta. A PF, por exemplo, fez menos de 30 operações contra a corrupção nos oito anos de governo FHC; mais de 180 nos 3,5 de governo Lula. Os exemplos se espalham por todas as áreas do governo. Os caras deixaram o país ter uma crise energética e ainda cobraram a fatura dos consumidores. Falam agora que são eficazes. Os caras fizeram o maior endividamento público do Estado, para obter dividendos eleitorais. Agora falam que são bons gestores e responsáveis.
Na falta de argumentos concretos, exploram preconceitos contra Lula, estimulam o ódio de classes, espalham desinformação e se valem de uma imprensa corrupta no mais alto grau para confundir tudo. Reduzem o Estado a uma discussão moral sobre indivíduos. A corrupção é resultado da má-índole das pessoas. Nem tocam em questões institucionais. É nítido que, ao desfocar a discussão do seu aspecto central, querem restabelecer o momento anterior, quando a corrupção não aparecia aos olhos e, quando aparecia, era resolvida apenas para efeitos de imagem e como questão individual. Prendam os corruptos e a corrupção estará resolvida, é o máximo que defendem. E nem prender eles fizeram.
Alckmin é um retrocesso em todos os aspectos. Mas, para preservar a imagem de estadista, podia ao menos se poupar de usar expedientes nazistas. Quando a campanha começou, o PT achou que ia enfrentar a direita, com cara de social-democrata. Na verdade, enfrenta a extrema-direita, com cara de direita competente. Mas não é nenhuma coisa, nem outra. Nem direita, nem competente.