13 de abr. de 2009

Poesia marxista

O sol invade. É dia de trabalho. Meu vô compra dobradiças e gasta R$20, muito para quem ganha salário mínimo da Previdência. Mas a pequena bisneta, a mais jovem da prole, merece um guarda-roupas novo.
Os braços doem; as pernas sucumbem. Meu vô não tem forças. Então desiste.
- Tanta madeira boa, e não posso trabalhar, diz.
As ferramentas são os instrumentos de existir no mundo. Não consegue mais manipulá-las. Então se desfaz delas, a preço vil.
Meu vô enterrou três filhos e duas esposas. Seu choro, que não vi, sempre foi contido. Suportou tudo, trabalhou uma vida inteira, regido pelo sol. Meu vô superou cada obstáculo, mas é insuportável não poder trabalhar.
Há um nome que o identifica: Laércio. Eu o reconheço como tal; ele se reconhece no trabalho. Não pode viver sem ele.
Seo Laércio foi internado há uma semana. Alucinava e foi amarrado na cama de um hospital, não distinguia os filhos e netos e chamava os médicos de assassinos. Mas ele não é isso. É, sim, as coisas que fez no mundo e que carregam seu nome: casas, objetos, cadeiras, guarda-roupas, cabos de enxada, uma família e eu mesmo, seu neto. Sou resultado concreto do trabalho do meu vô. Desta forma, eu o humanizo, objetivamente no mundo.
Meu vô nunca leu Marx. Mesmo assim, não gosta dele. Apesar disso, é pura poesia marxista. Pode se despojar de tudo, menos de si mesmo, menos de ser trabalho não alienado, de poder se realizar como homem pela força das próprias mãos. Não poder transformar seu meio o brutaliza.
Olho em volta e vejo as marcas das mãos fortes do meu vô em tudo. Indeléveis, os sinais impedem que as coisas que ele fez sejam fetichizadas. Em mim, que continuo sua obra, os sinais começam fora e se estendem até minha alma, triste neste momento porque há um pedaço de mim que sofre num leito de hospital.
Ele me vê e os olhos enchem de lágrimas. Já está bem melhor. Me cobra uma camisa que não lembro ter prometido. Não importa. Ontem, fui vê-lo mais uma vez, com um pijama novo e uma camisa bonita, listrada, moderna, que ele próprio jamais compraria.
- É para o senhor usar quando sair do hospital, vô.

9 comentários:

  1. Poxa Mário, vc é um fofo. Seu avó com certeza tem o maior orgulho do mundo em lhe ter como neto.

    Beijos.

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  2. Anônimo11:00

    Que texto bonito! é tão simples e profundo...

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  3. Anônimo09:52

    Gostaria de ver você escrevendo mais no seu blog... É lindo isso!

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  4. pessoadesconhecida02:45

    parafraseando Marx em bela prosa [real]...

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  5. Anônimo20:52

    Abandonou a escrita no seu blog? O que houve??

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  6. Onde você anda, Mário?

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  7. Poxa, Mário, volte a escrever. Teus textos são encantadores, de verdade.

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  8. Muito bonito o seu texto. De uma sensibilidade extrema.

    Abraço.

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  9. Goreti13:55

    Nossa!!!!
    Como me lembro do seo Laercio........ Voltei uns 40 anos no tempo.........

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Obrigado pelas palavras.