31 de jul. de 2006

Silêncio

Quedou silente. Depois, nunca mais ouviram uma palavra da boca dela. Chamaram médicos; depois, padres; depois, macumbeiras, feiticeiras, ciganas. Acenderam velas, depois xingaram. Deus continuava mudo; ela também.

Com o tempo, a irmã, desesperada, pôs-se a conversar com ela, todos os dias. Esperava resposta. Mas, depois, se acostumou com o silêncio. Falava sozinha, contava o dia, e respondia por ela:

- Ah, você também acha?

Ou:

- Não. Você não entendeu.

Passava os dias assim, falando com ela, muda, e dialogando com o silêncio. Depois, começou ler livros para a irmã, ainda que ela nada dissesse. Silenciosa, ela ouvia. Silenciosa permanecia.
Em silêncio, saía de casa, pegava o trem e ia para o centro da cidade. Depois voltava, lendo um livro que comprara numa banca da rua central. Não dava informações, não falava com ninguém, mas, no trem, quase ninguém percebia.

Em casa, a mãe achava que ela tinha enlouquecido. “Nada errado, tudo funciona. E essa menina não fala”. Achava que a outra filha tinha ficado doida também de falar a esmo para alguém que não respondia, ainda que parecesse entender. Alguém que não fazia um gesto sequer. Por fim, a mãe se pôs a freqüentar uma igreja, todos os dias. Depois um bar, onde bebia no meio dos homens e falava sem travas na língua, sobre qualquer bobagem. Então, fez sua rotina só chegar em casa depois que todos tinham dormido. E a casa estava quieta.

O marido não gostou. Homem simples, se viu entre três mulheres estranhas. Não entendeu e saiu da casa. Pôs-se no mundo, saiu sem direção, sem destino, pois que os homens não entendem e, quando se perdem, se entregam sem freios ao descaminho.

Mesmo assim, ela não falou. Mas parecia aflita. Quando a mãe deu para beber, chorou. Quando o pai saiu de casa, se trancafiou no quarto por uma semana e, por sete dias, não foi ao centro. Depois saiu e, triste, retomou a rotina. Por fim, acostumou-se a não ver nem pai, longe de casa, nem mãe, sempre rezando e bebendo. A irmã fingiu de novo. Ignorava que a mãe bebia. Perguntava sempre:

- Onde foi a mãe hoje?

Como se a mãe, por coincidência, tivesse sumido naquele dia, mas fosse aparecer no próximo. Daí ela perguntava de novo:

- Onde foi a mãe hoje? Preciso dela, mas pode ser amanhã também.

Parece que nem deu pela falta do pai. Um vizinho batia, ela respondia:

- Volta mais tarde. O pai não está agora.

E levava a vida, sem ninguém com quem falar. Ouvia música, via TV, varria a sala, lia para a irmã, deitava de noite e gritava:

- Boa noite, pai...

- Boa noite, mãe...

- Durma bem, irmãzinha.

Assim passaram meses. Os vizinhos estranharam, falavam pelas ruas, nas bancas de jornal, nas padarias de manhã. Mas ninguém ousou entrar lá e perguntar o que acontecia. Parecia sagrada a casinha de esquina, onde viviam três mulheres doidas. Pensaram em ligar para a polícia, para denunciar o sumiço do pai. Sabe lá Deus o que podem fazer três mulheres doidas. Depois, tempo vai tempo vem, esqueceram e deixaram a casa em paz.

A moça na janela sorria, mas não falava. Ficava ali, por vezes, o dia inteiro, olhando. A vizinhança criou o hábito de cumprimentá-la com um gesto, mas sem palavras. Ela parecia responder. A vida parecia, assim, normal.

Um dia, desavisado, ele passou por ali e, constrangido, disse, sem saber que a casa era sagrada:

- Bom dia Silene. Ainda zangada comigo? Eu voltei, viu...

A moça riu, olhou terna para ele:

- Bom dia, João. Brava não... Tenho algo para te dizer. E só para você.

28 de jul. de 2006

Quos amo

Quos amo, arguo et castigo. (A quem amo, advirto e corrijo)

“Concordar e amimar nada custa. Contradizer e aconselhar, isto sim. Amantes nunca dissentem um do outro. Mas esposos, que não se saibam contrariar e advertir, é que não se sabem amar. É o que vai do amor lícito ao ilícito, do amor puro ao impuro, do mundano amor ao amor santo. Um, todo carne, todo culpa, nasce do apetite, nele se ceva, e com ele acaba. Por isso é só blandícias, lisonja só e só mentira todo ele. O outro deriva do coração, e no espírito se acendra, pelo que vive de sinceridade, zelo e devoção, e todo ele é fé e confiança, todo estima e desvelo, todo escrúpulo e verdade. Esta a condição do amor casto, do amor fiel, do amor consagrado: o amor dos pais, o amor dos bem-casados, o amor da pátria, o amor de Deus.” (Rui Barbosa, em A imprensa e o dever da verdade)

Rui pensa a crítica por profissão da imprensa ao Estado e aos governos como alto ato de amor, igual à crítica que dedicamos a quem amamos. Rui tem razão. A crítica é um ato de amor, altíssimo, dos mais nobres, só permitido e só dado a quem mais amamos. Não aprendi com Rui isso. Aprendi com Faraco, meu orientador do mestrado. Ser amantíssimo, sempre foi crítico comigo, sem rodeios, sem palavras agressivas, mas sem complacência. Aprendera com Bakhtin e sua demolidora e amorosa crítica a Saussure, em Marxismo e Filosofia da Linguagem.
Complacência é dos piores gestos de desamor e se opõe à rigidez com que olhamos quem amamos. Tentei aprender e levar isso para a vida, não zangando nem com a crítica mais mesquinha, mais ferina e mais desamorosa. Em momentos da vida, fui alvo delas. Muitas vezes, para compensar, fui beneficiado pela crítica aguda e amorosa. Todas as críticas servem ou, no mínimo, devem ser ouvidas. Também busquei ser rígido com os que amo. Como professor, amo meus alunos exigindo deles tanto quanto meu coração mole permite. Com as crianças, sou afável, brincalhão, infantil e inflexível. É meu aprendizado para ser pai. Com meus irmãos, nenhum centímetro de retrocesso na crítica.
Crítico quem amo; critico por que amo. Ouço os que amo. Ouço quem me observa, mesmo que não seja alguém tão próximo. Ouço críticas de todos os lados. Mantenho os ouvidos abertos, por que são formas de “amor casto”.
Nos relacionamentos amorosos, é fácil o amor se tornar desamor e a crítica virar ofensa. Por isso, muitas vezes a paz eterna entre casais é vista como exemplo de relacionamento estável, pacífico, bem-sucedido. Pode esconder, porém, desprezo. Se não importa, não criticamos. Não dizemos nada. Há várias formas de um relacionamento fracassar: uma pelo excesso de crítica, de agressividade; outra pela falta.
Quando falta crítica, muitas vezes o elogio é a arma mais demolidora, mais insidiosa. É uma das armas de Iago para destruir Desdêmona e Otelo.

14 de jul. de 2006

Desalinho

Venta muito por aqui. E o vento desalinha meu cabelo. O calor é muito forte, mas o inverno começa a chegar, e o clima fica mais ameno. Tudo é longe. Caminho longos trechos para ir à panificadora, ao banco, aos sebos do bairro, às bancas de jornal. Nestas caminhadas, no meio da solidão, imagens me perseguem, inclusive a sua. E fico tentando alinhar os cabelos, mas o vento desalinha meus pensamentos também. E deste torvelinho de saudades já não consigo me desenredar.

10 de jul. de 2006

Nós, os melhores do mundo, derrotados

Cafu desembarca no aeroporto de São Paulo. Um repórter de TV pergunta-lhe qual lição o lateral tirou desta Copa. Cafu, de pronto, diz que aprendeu que “nem sempre o melhor vence”. Após a derrota para a França, não achei ser vivente que defendesse que o Brasil jogou melhor, que o acaso nos prejudicou ou qualquer outra justificativa. A França venceu com méritos, jogando melhor, o que só aumentou nossa fúria.
Mas Cafu não se refere àquele jogo. Pode ter posição divergente da média das pessoas sobre o desempenho da seleção contra a França, mas sua crença na superioridade dos brasileiros tem raízes mais sólidas, tem raízes históricas. O Brasil ganhou 5 copas, teve Pelé, o maior de todos os tempos (pelo menos no Brasil), teve Garrincha, tem o melhor do mundo (Ronaldinho Gaúcho), outro que foi melhor do mundo duas vezes (Ronaldo), o melhor do campeonato francês (Juninho), o jovem mais promissor (Robinho). As outras seleções têm bons jogadores. Nós temos 11 craques no time titular e mais uns tantos no banco de reservas.
A seleção tropeçou na própria empáfia, que começou antes, bem antes, quando Parreira dizia que eram todos contra o Brasil. A arrogância não foi embora nem depois das evidências de perder jogando pior, de ter feito uma Copa medíocre.
A resistência tem solo firme por que a crença na qualidade superior atávica da seleção não tem origem e nem se extinguem com Cafu e Parreira. Ela está em nós, que julgamos viver no país do futebol, celeiro de craques insuperáveis, único lugar onde Pelé poderia nascer.
É verdade que somos pródigos em produzir bons jogadores. O mercado europeu invadido por brasileiros é prova pragmática disto. Mas o menosprezo pelos demais é ridículo. Os comentários de Galvão Bueno sobre os jogadores de outros países revelam duas coisas: desconhecimento e prepotência. Ele disse, de Ribery, revelação francesa, que era um jogador ruim, mas que corria muito. Ribery tem 23 anos e foi um dos poucos jovens que tirou posição no time titular de um jogador experiente na seleção de Domenech. Menos, Galvão!
O sentimento está por aí, debaixo da nossa pele. Nós somos os melhores do mundo e, por isso, não admitimos a derrota. Pior ainda quando perdemos sem refutação. Este sentimento, esta arrogância de um país trágico numa das poucas áreas onde se sobressai talvez seja nossa forma de termos orgulho da brasilidade. É nos momentos esportivos que nos irmanamos como nação. É nestas horas que, apesar de tamanha diferença social e econômica, de tantos brasis, de tantas culturas, de tantas formas de ser brasileiro, nos vemos como um povo só, iguais. Irmãos. Todos filhos da mesma mãe gentil. E, todos nós, eu, você, Parreira, Cafu, arrogantes.
Este sentimento é canalizado a cada quatro anos por quem faz da copa um negócio. Nitidamente, no Brasil, a Globo e os anunciantes, como Nike e o guaraná Antarctica. Os anunciantes ainda estão num papel legítimo, se consideramos a publicidade uma prática legítima (não é, necessariamente, minha posição). Já a Globo faz o de sempre, desde a ditadura. Eugênio Bucci, em Brasil em tempo de TV¸ afirma isso com todas as letras. A TV fez dos momentos esportivos grandes festas do sentimento de ser brasileiro, por que estamos unidos, via TV, torcendo pelo mesmo time. Somos todos brasileiros, mesmo que minha camisa dry fit não tenha nada a ver com a roupinha de algodão amarela puída que meu irmão de nação veste. Sou um burguês do povo.
Galvão nunca sairá de onde está. Deveria narrar, mas torce. A Globo deveria cobrir a Copa, mas a promove. Quando os limites entre jornalismo e publicidade se diluem, o resultado é este: arrogância canalizada, promovida e estimulada. Cafu e Parreira apenas dão voz às crenças que plantaram em nós e que foram tão bem exploradas pela TV. Por isso, nada soa tão cínico quanto as matérias da Globo criticando a arrogância da seleção, como um dos sete pecados capitais ou um dos setes erros. É um lava a mão. A vitória é nossa; a derrota é deles, diz a Globo, nas entrelinhas.
A tudo isso, chamam de jornalismo. Nada é. Por que jornalismo não é aquilo que se prática à semelhança do que é jornalismo de verdade. Não é só a casca, mas as condições fundamentais nas quais ele se realiza. Jornalismo supõe independência. Quando o repórter trabalha pelo interesse comercial do seu patrão já deixa a seara do jornalismo. Entra naquilo que chamo forma-jornalismo (algo que tem formato de jornalismo, mas não é).
Triste país este que tem que aceitar, agora, depois de tudo, que tem uma seleção ruim feita de excelentes jogadores. E que tem um jornalismo indigno deste nome, feito (tirando as exceções, como Galvão Bueno) por excelentes jornalistas.

8 de jul. de 2006

DD

Um Dia (acho) Descobri o nome Dela: DD. Depois percebi o vento que Desalinhava os seus cabelos nos dias de sensaboria. Ao redor Dela, torvelinho. Tanto, que ao entrar na casa, logo as cortinas farfalhavam e acho que foi assim que intuí seu nome: num sussurro. Era assim também que ela se fazia notar, até para mim que, sistematicamente, fechava os olhos.
E, de escudar-me em pálpebras, ouvia só palavras:
- “Transformada, diante dos meus olhos, de torvelinho em furacão.”
- “Tanto de meu estado me acho incerto que em vivo ardor tremendo estou de frio.”
- “A nossa casa, Amor, a nossa casa! Onde está ela, Amor, que não a vejo? Na minha doida fantasia em brasa Constrói-a, num instante, o meu desejo!”
- “Teus olhos são duas sílabas Que me custam soletrar,”
Algaravia e suspiros:
- Eu...
- ...
- Se...
Do burburinho, Descobri que, além dos cabelos cuidadosamente Desarrumados, nada sabiam Dela, nem seu nome. Eu sabia. Talvez em erro, eu sabia como chamar aquele torvelinho de fios negros. Nunca vi nela a Divina de quem falavam, mas sabia-lhe o nome.
Neguei o quanto pude sua Divindade, mesmo quando estava perto (nestas horas Difíceis):
- Bom dia.
E eu gastava a tarde toda Descobrindo por que ela me dissera “bom dia”.
No fundo, eu sei, ela não era nada além de DD. Era uma Deusa. Eu sou ateu (juro por Deus). E, assim, num pedestal, Deificada, foi se tornando, tal qual uma santa Desejável e inacessível, solitária. Encostada silenciosa na parede ou movendo ares, quase sempre séria ou triste, Deram-lhe o fardo de não ser mortal. Assim, tornou-se uma estranha entre os mortais, petrificados de admiração e medo.
E, não por acaso, lançaram-lhe ao Desterro. Foi nestas ilhas Desertas, cabelos ruidosamente Desalinhados pelo vento carinhoso, que a encontrei, transformada, Diante dos meus olhos, de torvelinho em furacão. E, nestes dias, tive certeza do seu nome.
Ninguém me contou!
Ela mesma gostava do Desterro. Estava livre do risco de parir semideuses. Distante dos adoradores, poderia se entregar a um outro Deus. Adotou para si o nome de Distância e planejou a Descendência.
Sou só um mortal. Vi nela só uma mortal. Mas, nas ilhas, tive que reconhecer. Ela era eterna. Por mortais, acreditou ser Deusa, aceitou o Desterro e quis parir outros Deuses. Da pureza da linhagem, fez seu karma.
Que Deus me perdoe, mas vi nela só uma mortal. E só por causa da minha Descrença pude lhe dar um nome que qualquer mortal pode pronunciar: diana.
Então, herege, Desejei sua pele.

(Estou atrasado na atualização do blog, mas meu PC deu pau. Por isso, o atraso.)

2 de jul. de 2006

O sonho já é teu

Prá ser sincero, o dia ainda nem virou. E como são estranhas as horas da madrugada! Em verdade, agora é um outro mundo. Não há ninguém nas ruas, a vida está estacionada. Mesmo quando as pessoas estão acordadas e juntas, não são as mesmas pessoas. A madrugada recria o mundo; o breu mistura-se magicamente aos outros elementos para extrair deles sua segunda face, mais solitária e humana.
A solidão é, aparentemente, um mundo sem dor porque o outro não existe. E toda angústia provém do alheio, aliás como todo o resto. Deveria ser só eu, sem ar, sem sangue, sem dor, mas trago o outro dentro de mim.
Tua voz é a que berra e ecoa em meu peito agora e reproduz-me este fantasma madrugueiro. A falta de sono me afasta da cama; você aniquila de vez qualquer perspectiva de repouso.
Deixa-me dormir. Amanhã, o movimento dos dias ensolarados e ocupados me trará de volta o mundo dos outros. A rotina, a fumaça, as vozes, os carros e as buzinas poderão então abafar sua voz e me permitir seguir como se você fosse nada. Ou quase.
Não posso viver por você o tempo todo, dias, noites e madrugadas. Você não quer que eu viva em tempo algum. Posso tentar te matar, te fazer passado. Ao menos por uma noite, ao menos para poder dormir. Mas não sei se consigo.
Por favor, deixe-me o sono, pois o sonho já é teu.
Boa noite, sereia!

(Carta escrita em 27/11/1995, às 2:40 hs)

1 de jul. de 2006

As meninas cegas

Matrix é uma fábula sobre a irrealidade cotidiana, um mundo que aparenta uma verdade natural que, no entanto, oculta a concretude da opressão de humanos por máquinas. Matrix não existe. É só cinema, mas é uma fábula e, como tal, fala, a seu modo fabuloso, dos dias, das horas, do cotidiano da vida não-fabulosa. Matrix segue a linha de Descartes e a dúvida hiperbólica e de Marx e a ilusão ideológica.
Nada é mais insidioso e cegante que naturalizar a história. As meninas cegas fazem isso. Concordo plenamente com minha argüidora anônima do texto anterior (Ensinem as meninas) que é difícil fazer uma análise profunda estando na pele de um homem, mas discordo que tenha culpado as mulheres pelo machismo.
Meu ponto de vista, que talvez não tenha ficado claro, é que o processo histórico que produz o machismo em homens e mulheres se naturaliza de formas diferentes em cada um. Para os homens, parece natural ser machista. Há um cinismo biológico que defende a poligamia como conseqüência natural da imensa quantidade de espermas que um homem produz. Milhões de espermas conduzem os homens a, naturalmente, buscar várias parceiras, por que estão aptos a fecundar diversas fêmeas. Já a mulher produz apenas um óvulo por mês. Logo, é feita para apenas um parceiro. É uma justificativa machista para condenar a poliandria. Besteira deslavada, evidentemente, como boa parte das tentativas de biologização da cultura.
Homens são poligâmicos e machistas por que lhes é ensinado, desde pequenos, serem assim. Mulheres são educadas para a monogamia. Os festejos de um e outro antes do casamento indicam isso claramente. A mulher faz chás de panela, prepara-se para a vida a dois. O homem faz despedidas de solteiro, uma saída em grande estilo da vida de caçador. Uma olha o futuro; outro, o passado. Ambos reproduzem um padrão de relacionamento entre homens e mulheres que é machista. A despedida de solteiro é machista, mas a aceitação do papel de rainha do lar também é.
Na mulher, a naturalização de tal machismo se dá pela negação de sua existência. As meninas são educadas, como escrevi antes, para não ver. As reações ao meu texto, exceto a quarta, são sintomas disso. O ataque ao machismo das mulheres é tomado como, ele próprio, machismo, o que pode ser. Mas isso não exclui que a reação seja, também, a confirmação da negação de ver: mulheres são machistas.
Tanto pior quando são o elemento fundamental da educação dos filhos nos primeiros anos de vida e repetem cegamente a formação para um padrão machista de relacionamento. Elas dão bonequinhas e fogõezinhos para suas filhas e carrinhos e bolas para os sues filhos ou aceitam isso como natural.Ninguém tem mais ou menos culpa. Mas uma diferença é fundamental. O machismo dos homens é evidente, está posto, é um inimigo a bater. É um inimigo para mim mesmo, que tento enxergar suas manifestações para combatê-lo dentro de mim, já que fui educado para ser macho, caçador, conquistador. E nem cheguei a ganhar carrinho e bola quando era criança, pois perdi o pai aos 3 anos de idade.
O machismo das mulheres, tanto pior, é um inimigo oculto, que se esconde e, neste momento, é mais perigoso. É verdade que esta prosa é recente. Data dos anos 60, dos movimentos de mulheres que vinham no bojo da contracultura. Mas estes mesmos movimentos sempre tiveram a premência de atuar em duas frentes: ganhar os aliados e combater os inimigos. Ou seja, por um lado convencer as mulheres sobre a seu direito à igualdade; por outro, disputar com os homens os direitos das mulheres. Deste processo, surge, por exemplo, uma legislação que condena e cria mecanismos para combater a violência doméstica contra a mulher.
O machismo das mulheres se manifesta de diversas formas, naturalizadas, evidentemente. Uma delas, é o comportamento de quem espera no jogo da conquista, que era o que queria apontar no outro texto. As meninas cegas acham que é assim, que é natural, que comandam o jogo por que escolhem. Mas não entendem que quando o homem consegue beijos ou sexo da mulher, ele ainda não está conquistado. Ele ainda não a escolheu. Mas, para ela, normalmente a conquista está feita. Muito mais as mulheres que os homens esperam a ligação no dia seguinte. Nem sempre é assim, mas é assim na maior parte dos casos.
Vejo tudo isso para escolher, para viver conforme os princípios nos quais acredito e que, muitas vezes, não são os mesmos que aprendi desde pequeno. Evito as mulheres machistas, da mesma forma como sou totalmente inábil para a conquista noturna de fêmeas estranhas. Sempre senti, desde a adolescência, a pressão para ser macho, o que é uma violência simbólica muitas vezes. Há uma música da Plebe Rude que sintetiza esta pressão na noite. Chama-se Johnny vai à guerra:

Johnny vai à guerra outra vez
diversão que ele conhece bem
Johnny vai à guerra outra vezenquanto que a trégua não vem (não vem...)
Você os ouve? Estão lá fora!
Você os vê? Estão lá fora!
Seus aliados, estão lá fora!
Contra você!
E a trégua quanto tempo que eu espero
E a trégua quanto tempo, não vem (não vem...)
Agora a noite terminououtra batalha foi ganha
Mas ainda restam outras guerras
outros fins de semana
Mas ainda restam outras guerras
outros fins de semana
outros fins de semana, outra batalha,
outros fins de semana,
outros fins de semana
Nunca!

Para mim, seria muito bom viver num mundo menos machista, por que não quero ser medido pelas vitórias neste campo de batalha. Não quero esta guerra. Não acredito nela. Mas faço minha parte ao tentar fazer que as meninas cegas vejam. São as mulheres, sobretudo, que devem entender as questões de gênero. Afinal, são elas que precisam que as coisas mudem, não os homens.
As meninas cegas me vêem como alguém que está do outro lado, mas sou um espião que conta o que os homens dizem quando as mulheres não estão ouvindo. Se me vêem como quem compartilha destas posições, é pena. Machista sou, como sou preconceituoso. Mas sou cada vez menos quanto mais tenho clareza desta condição cultural da qual não escapo. Pena que as meninas cegas só vejam machismo em mim. Só eu estou atado à cultura do meu tempo.