28 de dez. de 2008

Pó vermelho

É quase quatro da manhã. Estou numa pequena cidade do interior do Paraná. Um cara que conheci há algumas horas me oferece cocaína. Declino. Não gosto de tomar nem antibióticos, o que dirá pó. Na minha cidade natal, em outra noite, não me oferecem nada, mas garantem que posso conseguir tudo, de maconha a crack ou LSD.
O que aconteceu que alastrou as drogas pelo interior do Paraná não entendo, mas há uma geração drogada de pés vermelhos. Não deve ser diferente em outras cidades pequenas. Como tudo num mundo capitalista, as drogas viraram uma indústria, comércio, produção de vício para ganhar dinheiro.
A contracultura tinha uma relação ideológica com as drogas. Nem por isso seus expoentes ficaram imunes às suas tragédias. A cena eletrônica tem uma relação cultural com as drogas sintéticas. Isso também não a livra nem a livrará dos danos.
No interior, no entanto, o consumo é simplesmente para acelerar a vida. É o retrato de uma juventude vitimada pelo mercado do prazer ao extremo.

18 de dez. de 2008

Curitiba, de costas

Olho Curitiba, de costas. Sinto saudades. É estranho partir deste lugar e sentir falta. Curitiba foi feita para ser abandonada, cidade chata, modorrenta, sem identidade cultural, sem um povo caloroso. Cidade sem nada. Não importa. Sinto saudades.
Cheguei há muitos anos. Vivi antes numa cidade muito pequena (5 mil habitantes) e em outra muito grande (mais de 10 milhões de habitantes). Curitiba foi uma escolha apenas conveniente. Só isso. Mas, com o tempo, virei seu filho.
Falo mal de Curitiba, o que é muito curitibano. Reclamo do trânsito. Prefiro a cidade calma onde cheguei pela primeira vez. Não consigo definir o que é ser curitibano. Mas amo este lugar, porque não há cidade onde se é mais livre de estereótipos. Não há uma música curitibana. Aleluia... Não há uma cultura curitibana. Viva...
Somos tudo e nada no mundo. Isto é o que nos singulariza. Todas as culturas, todos os sons, todas as misturas vivem em um curitibano ciente de si.
Tenho pena dos que estão presos à imagem que fazem de si mesmos: mineiros, paulistas, gaúchos, baianos, sertanejos, etc, etc, etc. Só um curitibano de coração é livre.
Eu sou livre. Apesar das saudades.

11 de dez. de 2008

O bonsai e a pimenteira

Eles eram lindos: o bonsai e a pimenteira. Um verde, frondoso; outra vermelha, cheia de frutos rubros. Levei-os comigo, para minha casa, para cuidar deles, para trazer vida ao lar, para ensaiar os cuidados com quem em tudo de ti depende.
Porém, por mais zeloso que fosse, por mais que tentasse acertar, o bonsai amarelou e todas as folhas caíram. Ficou um pedaço sem vida de mini-árvore, galhos retorcidos sem verde. A pimenteira também deixou cair seus frutos, feneceu diante dos meus olhos, como cena acelerada do cinema. E o vermelho sumiu.
A casa carregava uma energia pesada, algo estranho presente no ar dali, quase irrespirável. Desesperado, retirei o bonsai e a pimenteira e os levei para o campo, para a casa dos que me amam. Não queria que minhas crianças morressem, mas pareciam cansadas de viver e recusavam a fotossíntese.
Passou o tempo e, então, aconteceu. Um dia, sem motivo aparente, aquela energia se dissipou. Havia caído uma tempestade no dia anterior, mas o céu amanheceu limpo, claro, solar, pronto para produzir vida novamente.
Senti saudades e fui para o campo. Cheguei de noite, na penumbra de um céu limpo e sem lua, pois que a dona redonda se preparava para iniciar um novo ciclo. No céu, vi estrelas cadentes. Várias, como nunca tinha visto. Parei o carro, fiz pedidos, rindo, com a fé que nunca tinha tido.
Foi quando vi, com olhos brilhantes de quem vê um milagre. Ao meu redor, centenas de vagalumes. Sempre amei vagalumes, mas os perseguia em pares, trios, nunca havia sido cercado por centenas deles. Estavam ali, piscando, em torno de mim, num anel de luz.
Há sinais de vida por todo lado. Não sei como não conseguia vê-los. Meu bonsai está verde; minha pimenteira, vermelha; todo dia, vejo vagalumes; e espero, confiante, a realização dos pedidos que as estrelas quiseram me conceder.

9 de dez. de 2008

Creio em Nelson

Para ti

Prostitutas, proxenetas, aliciadores, pedófilos, adúlteras, todos pagam seus pecados nos textos de Nelson Rodrigues. No mundo rodriguiano, as regras morais não poupam ninguém, nem os que, por ligeira fraqueza, pecam. Nelson se definia como um escritor moralista. Deus de seus personagens, infligia-lhes duros castigos.
Creio em Nelson. Como um recém-convertido, repito as palavras que ele escreveu. Que o mundo repita a literatura. Que os adúlteros paguem, da forma pior que um moralista pode imaginar.

6 de dez. de 2008

sem nome

Para ti

Quantas vezes cobrastes que postasse no meu blog, contasse o quanto te amava. Perdoa-me. Nunca fiz deste lugar seu altar.
Mas não imagines que tento remendar o que não fiz. Volto agora porque preciso escrever, me reconhecer, falar de sentimentos comuns a tantas pessoas. Escrevo por mim, não por ti.
Estou de luto. Choro tua partida. Por um tempo, viverei um rito de despedida. Será um tempo curto, pois me fizestes o favor de matar dentro de mim tudo que amava em ti, tudo que sempre justificou tentar de novo. Agora, tudo é pouco, tudo é vago, tudo é impreciso. Esqueço os motivos que me fizeram ficar.
Como sempre tivestes dificuldades para perceber quando os textos te visavam, te avisarei, publicando uma epígrafe “Para ti”, caso algum texto seja para você. Não espere muitos.
Desculpa não dizer teu nome. É para esquecê-lo, por fim. Como não carregas meu nome, como nunca me carregaste em ti, na tua vida, em teu futuro, pois que vives só o presente, será fácil esquecer, mas é bom não profanar palavras, pois que podes voltar se eu tanto te evocar.
Assim, de hoje em diante, te chamo de “sem nome”.

2 de dez. de 2008

Tu, fêmea

Tu, que finges ser carinho os teus gestos que despertam cobiça, desconfio de ti. Tu anuncias ser franqueza o que parece ser vaidade. Tu inventas nomes bonitos para os medos comuns de toda gente. Tu não és livre, como ninguém é. Por isso, não exagere teu próprio poder.
Por que seduzes e finges não ver? Por que excitas e então partes?
Tu és fêmea, sereia eterna feita de brumas e encantos, linha torta, sinuosa, incompreensível. Tu és mulher e não sabes onde quer chegar.
Eu, obtuso macho, não te entendo, mas vejo que jogas. Queria jogar, mas, neste mundo que é você mesma, sou sempre derrotado. Se aceito tuas regras, tu vences; se não jogo, tu não vences, mas perco do mesmo jeito.
Então, aceito a derrota num jogo que não entendo. Nem quero jogar.

28 de nov. de 2008

Aline Rosset Rodrigues de Morais

Ela é minha prima. Quando pequena, magrela e sem jeito, eu a achava mimada, a garota que só comia nuggets, miojo, salsicha e mais umas duas comidas no mundo. Como sua mãe, conheceu seu marido na rua onde morava. Namorou oito anos, sempre o mesmo homem, e com ele se casou, um mês antes de completar 22 anos. O casamento foi lindo. Eu vi.
A menina magrela tinha virado uma mulher linda, mas não imaginava o quanto ela era bonita. Quatro meses depois do casamento, seu marido, um triatleta e personal trainner, foi atropelado andando de bicicleta na Rodovia Anchieta. Seu corpo foi arremessado longe, por um carro dirigido por um bêbado. Sempre o álcool nas tragédias.
Foi ali que pude ver que a beleza da minha prima não era apenas externa. Desde então, um ano e quatro meses se passaram. Ela continua do lado dele, em tudo, com todas as agruras, sofrimentos, esposa zelosa e devotada. Nestes momentos, vemos quem são as grandes pessoas no mundo.
Eu te admiro, Aline, como nunca imaginei que admiraria. Me enganei muito. Ainda bem. Tu és gigante. E me sinto até pequeno diante de ti.
Por isso, se os que lerem isso a encontrarem pela rua, ajoelhem perante ela, pois minha prima é um anjo. Toda aquela beleza externa se repete, de forma mais aguda ainda (como se fosse possível), numa alma que brilha.
Eu te amo, priminha, pelo ser gigante que você se tornou, comendo miojo, sabe lá Deus de que maneira.
A ti, amor, respeito e admiração.

25 de nov. de 2008

O amor não é um jogo

O amor, se fosse, seria um jogo estranho em que todos os jogadores perdem se jogam. Por que a conquista, o jogo de sedução, a invasão de um reino desconhecido, o desejo que se desperta no outro a fim de fazê-lo vir até nós, os óleos da cobiça e as fumaças da volúpia, nada disso é ainda amor. A paixão, vontade que se sente por uma projeção, é egoísta demais para ser chamada de amor.
A paixão é o esteio afetivo dos adolescentes, seres só menos egoístas que as crianças, mas já sem a mesma pureza. A febre dos 15 anos parece a erupção mais voraz do amor. Não é. É só a expressão primeira de um sentimento novo e intenso. Intensidade não é necessariamente amor. Intensidade é só um vetorial. Qualquer sentimento, até o nojo, pode ser intenso.
Amor pode ser intenso, mas vive do dia a dia, não das noites de verão, pois sua marca é a constância. Amor enreda planos, constrói respeito mútuo, admiração e desejo. Quando, por acasos ou descuidos, termina, ninguém vence. Todos perdem. Se no jogo da sedução, acabar um relacionamento é vitória, no amor é responsabilidade. A derrota menor acaba sendo de quem não teve que decidir, quem tentou evitar, pois parte sem culpa.
Assim seguem os amantes separados: ambos perdem, como no frescobol. É possível acelerar, aumentar a intensidade, colaborar ou ficar no limite, mas não faz sentido tentar forçar o erro do parceiro.
No amor, ninguém vence ao final do jogo. Vencer é continuar. Desejar, intensamente, as roupas de cama brancas sempre lisas, dia a dia, rotina previsível e indispensável. Apostar uma vida inteira e nunca jogar, nem mentir, nem enganar, nem dissuadir.Pois o amor só é um jogo na cabeça de quem não sabe amar, exceto a si mesmo.

19 de nov. de 2008

Eu não sou o superman

Ninguém é o superman. Ninguém pode, como Deus, mudar o curso da história, inverter a ordem do tempo. Para mortais, o que quebrou está quebrado. O passado não pode ser refeito. Paciência.
O superman tem poderes para de tudo cuidar e refazer seus erros. Os pobres mortais não. Têm que conviver com os erros do passado, sem poder consertá-los. No máximo, podem aprender e tentar refazer o futuro, este sim em constante mutação, conforme nossas atitudes no presente.
Já pensei que fosse o superman. Não aceitei meus erros. Tentei reescrever o que não podia ser reescrito, tentei controlar o que não me convinha controlar. Pulei de um prédio jurando voar.
É melhor aprender a suportar o passado, a perdoar os próprios erros. Não quero mais refazer nada. Só não quero nunca mais ser tentado por aquela capa vermelha que deixei no guarda-roupas, como lembrança dos dias em que achei ser o superman.
Eu não sei voar. É triste, mas resigno-me.

P.S.: Clique no link do título para ouvir "Superman".

10 de nov. de 2008

Ohana

De tudo, afastar-me de vocês, família, é o mais doloroso. E sei que, caso eu queira ou caso não, isso vai acontecer, gradativamente. Seria mais fácil não saber a dimensão das coisas, não saber o significado de tudo isso, mas sei. Vejo, mas não gosto do que vejo.
A vocês que estavam lá e me viram jurar amor eterno, saibam que assumi, naquele instante, vocês também como meu sangue. E de coração vos amo, pois amá-los é o mais simples, o mais fácil, o que menos confunde meu coração.
Os planos que fiz passarão. Não vou ter que brigar com ninguém para que não ensinem meu filho a comer McDonalds, nem terei mais discussões sobre política, nem tampouco faço parte do quinteto de corintianos. Não terei mais que “disputar” o seu amor de sogra, mãezoca. As festas cheias de gente vão ficar no passado, com o tempo. A gritaria, a mesa de baralho, a costela e as festas na chácara. Tudo que amo em vós vai se enevoar. Eu sei.
Se tudo fosse pouco, a forma como vocês me amaram já seria motivo para todas as lágrimas que derramei. Por vós, não por ela.
Sei que o tempo é senhor das curas, que meu coração vai se acalmar, que tudo ficará em mim, mas como a vida que vivi e que muito me ensinou. Outra virá e terei que respeitá-la. Outra família entrará em minha vida. E terei que me dedicar a eles também, pois amor é zelo e cuidado. Tudo vai mudar. Que assim seja, mas dói.
Talvez, por fim, me afastar seja o que me sobre, mas prometo, enquanto for possível, estar aqui e nunca mais abandonar. Ou esquecer.

8 de nov. de 2008

Às vezes jazz, às vezes blues

Uma manhã jazz tem sol ameno, mas só depois das 10 horas, para não me acordar muito cedo. E o dia passa, sem desespero, vida de improvisos e ritmo veloz, mas manso. A maioria dos dias é assim, às vezes menos calmos, mas ouço Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Billie Holiday quase sempre.
Uma noite blues não brilha, nem dentro nem fora, e gasto tempo a ruminar o que escapa ao meu controle. O ritmo desacelera e o tom é alto, agudo. Alguns dias são assim. E ouço B.B. King, Muddy Waters e Yardbirds.
Às vezes, os dias são jazz; às vezes, são blues. Mas amo tanto jazz quanto blues.

4 de nov. de 2008

Pelo direito supremo e inalienável a domingos de manhã

Que o tempo desacelere. Quem vive ao lado de alguém tem o direito supremo e inalienável a domingos de manhã. Tem direito a acordar sem pressa, merece toda preguiça do mundo nos dias de folga.
Que amar demanda tempo, demanda carinho entre gemidos, volúpia e força. Acelera e pára. Repousa e ofega, um após o outro ou vice-versa.
Nos domingos de manhã, o café na cama ou juntos, na mesa, não tem calendário nem agenda. O almoço pode ser tardio. O dia pode esperar. O sono é inútil, mas cochilos lânguidos são a lei.
Tenho desejo de domingos de manhã, de dormir cedo no sábado e não ter compromissos, pois há que se guardar os dias santos. E divino é o sexo.
Domingo não pecar é pecado.

30 de out. de 2008

Afetos silenciosos

Minha sobrinha não fala; meu avô não ouve. Mas assim, sem palavras, eles se amam. Ela é vivaz, alegre, tem o sorriso mais lindo que já vi em uma criança. Os cabelos dela são como os meus e o do meu irmão: lisos, escorridos, correndo para o chão. Rindo, ela abre o danoninho, pega uma colher e os leva para o bisavô. Dar o que mais se ama é o supremo gesto de carinho. É o que ela faz.
Ele ri, em frente à TV, num volume ensurdecedor. Vê Maria Fernanda Cândido e telecultos. Nos dias de semana, procura o que fazer. Meu avô parece ter tempo demais e arruma afazeres diários. Carpinteiro, construiu uma família, sem reclamar, de sol a sol, homem de poucos sorrisos, que hoje, décadas depois, beija seus netos no rosto, como nunca fez antes. O tempo amolece as rudezas.
Ouço a serra zunindo no quintal. Meu avô cria coisas e pensa no futuro. Minha sobrinha vive o presente. Feliz, olha o bisavô maravilhada.

15 de jul. de 2008

Tyger, tyger, by Willian Blake

Tradução de Paulo Azul
Tigre! Tigre! Flamejante brilho
Na floresta da noite
Quão imortal mão ou olho
Poderia eternizar sua temível simetria?

Em que distantes profundezas ou céus
Arde o fogo de seus olhos?
Em que asas ousa acender?
Qual a mão tem a ousadia de roubar o fogo?

E que ombros, e qual arte,
Pode enlaçar os nervos de seu coração?
E quando seu coração começa a bater,
Qual poderosa mão, e qual poderoso pé?

Qual o martelo? Qual a corrente?
Em que forno foi feito seu cérebro?
Qual a bigorna? Qual a mordaça
Seus terrores mortais conteve?

Quando as estrelas abaixaram suas lanças,
E o céu inundou com suas lágrimas,
Ele sorriu quando viu seu trabalho?
Ele fez em cordeiro tornar-se?

Tigre! Tigre! Flamejante brilho
Na floresta da noite
Quão imortal mão ou olho
Poderia eternizar sua temível simetria?


Tradução de Vasco Graça Moura

tigre, tigre, chama pura
nas brenhas da noite escura,
que olho ou mão imortal cria

tua terrível simetria?

de que abismo ou céu distante
vem tal fogo coruscante?

que asas ousa nesse jogo?

e que mão se atreve ao fogo?

que ombro & arte te armarão
fibra a fibra o coração?
e ao bater ele no que és,

que mão terrível? que pés?

e que martelo? que torno?
e o teu cérebro em que forno?
que bigorna? que tenaz

pro terror mortal que traz?

quando os astros lançam dardos
e seu choro os céus põem pardos,
vendo a obra ele sorri?

fez o anho e fez-te a ti?

tigre, tigre, chama pura
nas brenhas da noite escura,
que olho ou mão imortal cria

tua terrível simetria?