12 de nov. de 2006

O pior da TV

O pior programa da TV brasileira é o Vídeo Show. Ok... Este títluo honorífico sempre é atribuído à Gugu, João Kléber e Faustão ou a programas policiais. Mas, nestes, por piores que sejam, sobra um resto de mundo, de vida, de sociedade, de gente. Podem estar falsificados, humilhados, estereotipados, mas há algo de real neles. No programa do Ratinho, os barracos são um show na medida para a TV, mas repetem, de forma burlesca, um traço da cultura popular: sua absoluta falta de necessidade de etiqueta, de comportamentos polidos e falsos.
No Vídeo Show, não sobra nada. A TV fala de si, pergunta sobre si, promove se a si mesma. É o reino da irrealidade virtual. No Vídeo Show, o que se exige da audiência é que penetre na televisão, que seja absorvido, como num poltergeist moderno. Entre para este mundo, de atores ruins e lindos, de novelas com diálogos forçados, de culto à personalidade: é isto que o Vídeo Show estimula. O pior da TV é a própria TV. Por isso, quando ela se refere a si mesma, exclusivamente, o desastre é evidente.
O VS surgiu com a proposta de mostrar a TV por dentro, de desmistificá-la, de permitir à população dialogar com a TV. Virou seu contrário. Os fãs do VS são os piores espectadores, são os mais vidrados, os que mais vivem a realidade do vídeo. Nada é mais trágico. Viver dentro da TV é como viver num sonho constante, como viver sob o efeito de drogas, como viver alucinado. É a irrealidade cotidiana.

5 de nov. de 2006

Adornianas: As dietas mais famosas do mundo

Programa do Raul Gil. Anunciam, como está na moda, no meio do programa, um troço que faz exercícios abdominais com choques, sem esforço, e que tonifica a barriga. Preço módico. Brinde: um livro com a dietas mais famosas do mundo. Um sujeito abre, lê uma delas e diz: "Muito bacana".
Que mal há, que dano pode trazer? Para o corpo, pouco. Mas para a mente, muito. Quando a régua que mede se uma dieta deve ser seguida ou não é sua fama, há algo errado. O campo da comunicação assume uma tarefa que cabe ao campo médico. Então, substitui o discurso médico por tolices. Veja bem, não se tratam das dietas mais saudáveis ou eficazes, mas das mais famosas.
Quando um leigo atesta positivamente, achando bacana uma dieta dos signos, a coisa piora. Se a comunicação invadir todos os outros campos, nossa sociedade vai virar pó. Adorno reviraria. É o império da ignorâncioa midiática.

20 de out. de 2006

Mademoiselle

Acordo desesperado. Sonhei contigo e não lembro do sonho. Tento dormir, mas a mente já alucina. Então revolvo cacos de memória, te procuro dentro de mim, tento associações, apanho fragmentos. Aos poucos, vou lembrando.
Tudo começa ficar claro. Te vejo, uma estranha para mim, e dirijo a palavra a ti. Te chamo de "mademoiselle". Então lembro que je ne parle pas français. A memória se emenda. A primeira palavra que te disse, na vida, foi "senhorita". Você, sim, fala francês. Te chamam Mille, redução sabe lá de que jeito de "mademoiselle".
Então me assusto com os exageros do sonho. A primeira palavra que te disse foi a palavra certa, palavra que já nos ligou, desde o início. Depois, o sonho continua cheio de incoerências, por ser perfeito demais. Te vejo mais vezes. Falo contigo. Te peço o telefone. Ligo, diversas vezes. Te espero na saída do trabalho, vindo do nada. Você liga de madrugada. Te levo flores. Te descubro; e você, a mim. O sonho é como um roteiro de cinema, de uma história de amor feliz. Por isso, o sonho é estranho. Só o sonho e o cinema podem conter tanta perfeição.
De manhã, entre poeira onírica, resto de sono e preguiça, não distingo real de irreal.
A vida é por um triz. Ela poderia ter passado por mim, sem que eu a visse. Mas aconteceu diferente. Aconteceu de um jeito que as pessoas conhecem bem: como se houvesse um plano, como se não fosse tudo acaso, como se o destino se revelasse e quisesse nos presentear.
Acontece com muita gente. É um sinal do acaso, do deus acaso. Às vezes, uma palavra pequena serve, um gesto tolo aproxima, como se tudo estivesse já decidido. Aconteceu como acontece a toda gente: uma história perfeita. Aconteceu como acontece quando o coração quer ver. O meu não está mais cego.
Mas ainda não lembro do sonho da última noite, quando sonhei com ela. Eu sei que sonhei com ela, por que pensar nela é o trabalho mais usual da minha mente. Mas deixa... Um dia acordo com ela do meu lado. E vou pedir a Deus que não me acorde, apesar de já estar acordado. Então, vou enganar o senhor sonho. Vou pisar no seu mundo de olhos abertos.

7 de out. de 2006

Argumento único

Em política, repetir o mesmo argumento sempre é muito útil. De tanto repetir algo, tal coisa parece verdade, ainda que pouca relação tenha com qualquer coisa no mundo. Além disso, o argumento único é fácil de entender.
Uma vez, em 1989, pergutaram o que Collor responderia se perguntassem sobre qualquer outro tema que não os marajás. Ele disse que argumentaria qualquer coisa e depois voltaria aos marajás. Collor foi acusado de usar um expediente nazista, mas a crítica nunca alcançou repercussão. Hitler fazia o mesmo. Pouco importa se os problemas do Brasil não se resumissem aos marajás, a eles cabia toda culpa. Pouco importa se a acusação aos judeus lhes impultasse coisas totalmente estranhas a eles, os judeus eram os culpados de tudo.
O argumento único é a morte da razão, é atribuir a um culpado, inimigo maior do Estado, a responsabilidade por todas as mazelas. Evidentemente, a realidade é mais complexa.
FHC e Alckmin, ventríloquos um do outro, repetem, como uma pregação collorida ou nazista, que o mal atávico dos petistas, a desonestidade, é responsável por todas as mazelas do Estado. Repetem que "a patota do PT" faz o Estado ser ineficiente e corrupto. Não há o que comprove tal ineficácia, exceto os problemas que o Estado brasileiro carrega há anos e que ainda precisam ser superados, como, por exemplo, as filas no INSS. A comparação, em termos de gestão, entre FHC e Lula mostra coisa muito distinta. A PF, por exemplo, fez menos de 30 operações contra a corrupção nos oito anos de governo FHC; mais de 180 nos 3,5 de governo Lula. Os exemplos se espalham por todas as áreas do governo. Os caras deixaram o país ter uma crise energética e ainda cobraram a fatura dos consumidores. Falam agora que são eficazes. Os caras fizeram o maior endividamento público do Estado, para obter dividendos eleitorais. Agora falam que são bons gestores e responsáveis.
Na falta de argumentos concretos, exploram preconceitos contra Lula, estimulam o ódio de classes, espalham desinformação e se valem de uma imprensa corrupta no mais alto grau para confundir tudo. Reduzem o Estado a uma discussão moral sobre indivíduos. A corrupção é resultado da má-índole das pessoas. Nem tocam em questões institucionais. É nítido que, ao desfocar a discussão do seu aspecto central, querem restabelecer o momento anterior, quando a corrupção não aparecia aos olhos e, quando aparecia, era resolvida apenas para efeitos de imagem e como questão individual. Prendam os corruptos e a corrupção estará resolvida, é o máximo que defendem. E nem prender eles fizeram.
Alckmin é um retrocesso em todos os aspectos. Mas, para preservar a imagem de estadista, podia ao menos se poupar de usar expedientes nazistas. Quando a campanha começou, o PT achou que ia enfrentar a direita, com cara de social-democrata. Na verdade, enfrenta a extrema-direita, com cara de direita competente. Mas não é nenhuma coisa, nem outra. Nem direita, nem competente.

27 de set. de 2006

O poder mais corrupto

Mudei meu voto quatro vezes, nos últimos 18 meses. No auge da crise, desisti de votar em Lula e quis que a esquerda constituísse um outro partido, que tivesse visão estratégica, que não cometesse os mesmos erros que o PT cometeu ao longo da sua história. Não queria a esquerda que racha a esquerda e leva água para a direita, como aconteceu na eleição que levou Chirrac para o segundo turno contra o ultradireitista Le Pen, na França, e como fazem PSOL e PSTU por aqui. Engraçado como o papel de extrema-esquerda no mundo é ser linha auxiliar da direita.
Quando acreditei que os rumos do país e das esquerdas passava pela reeleição de Lula, desisti de sonhar, por ora, com uma alternativa à esquerda. Mas a ação do governo federal na área de Comunicação me colocou, mais uma vez, fora das estatísticas da reeleição do presidente. O PT já havia enterrado o projeto do Conselho Federal de Jornalismo. Então, o governo tomou a decisão que interessa à ABERT - Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, que defende, sobretudo, os interesses da Globo, de escolher o padrão japonês para a TV Digital e recusar discutir as potencialidades democratizadoras da nova tecnologia. TV Digital, na propaganda pela reeleição, é uma questão meramente industrial, interatividade para o consumo, potencial de geração de emprego e renda e de desenvolvimento tecnológico, na área de semicondutores.
Por fim, Lula vetou, na íntegra, o projeto que atualizava as funções profissionais do jornalistas.
Foi a gota d'água. Nem tanto pelas decisões em si, mas pela forma como foram construídas, forçadas pelo meios, com base em mentiras e distorções. Outro dia, Tostão escreveu que se o projeto de atualização das funções dos jornalistas fosse sancionado teria que parar de escrever sua coluna. Tostão tem meu respeito, escreve muito bem, mas está mal informado, por que leu isso nos jornais. Para defender seus interesses, os jornais mentem o quanto for necessário.
Estes mesmos jornais têm massacrado Lula, que, ao longo do mandato, não conquistou os donos dos veículos e perdeu o apoio dos jornalistas. A imprensa é crítica o máximo que pode com Lula. E é descompensada. Cobre o que prejudica; silencia sobre o que ajuda o governo. Detona a compra do dossiê Vedoin e silencia sobre o conteúdo do dossiê.
A questão é simples. O governo Lula, perto do que deveria ser, é uma tragédia. Perto dos governos da direita, é incomparavelmente melhor. Todos os dados mostram isso; o povo percebe; e a direita não se conforma. Devemos querer mais, construir alternativas. A imprensa quer que o PSDB de Alckmin seja a alternativa. Seria um retrocesso imenso.
A imprensa é assim por que é um poder sem regras. Toda vez que alguém ou algum movimento social tenta regrar a imprensa, é acusado, imediatamente, de autoritário. Qualquer regra é tratada como limitação à liberdade. Liberdade para mentir, inclusive. Democracia não é a liberdade irrestrita, mas a liberdade com regras, limitada pela liberdade alheia. Minha liberdade de ser informado é afrontada, todos os dias, por uma imprensa corrupta.
Este é para mim o resultado da crise. O PT não é tão limpo assim. Sei bem que não, pois o conheço de perto. Mas sei bem que os canalhas do PT juntos, somados, não chegam à canalhice de Arthur Virgílio ou Álvaro Dias. O governo errou feio, muitas vezes. Usou o fisiologismo como instrumento da governabilidade. Isso dói para quem acredita na política como o espaço do ser humano autônomo, senhor dos seus juízos, capaz de decidir e interessado nisso. O Congresso é um antro; o Judiciário, um covil. Mas a imprensa é o pior de tudo.
A corrupção no Estado se organizada em torno das verbas controladas pelo executivo, mas não é nele que está o maior problema. No executivo, há, ainda que precária, uma possibilidade de controle pela população. Maluf não ganha mais eleição, por que sua carreira no crime o inviabilizou. Se fosse candidato a deputado federal, seria eleito com votação escandalosa.
O esquema de voto nominal faz com que a rejeição não seja relevante para definir se alguém será deputado ou não. Um corrupto rejeitado por 99% da população, mas votado por 1% está eleito e reeleito quantas vezes quiser. Neste modelo, reside a semente da corrupção por governabilidade, o tal fisiologismo. Reside na impossibilidade da população de recusar os canalhas. Por isso, não é justo afirmar que a população, quando esquece em quem votou, é culpada pelo descalabro no Congresso. Deputado neste país, normalmente, é eleito pelo pobres para defender os interesses de quem o financia. Quer saber a quem serve um deputado? Olhe quem são seus financiadores de campanha.
O Judiciário se corrompe pela mesma razão: é um poder sem fiscalização e, tanto pior, criado pelo executivo, que indica os juízes.
A imprensa, quarto poder constituinte de República e o único privado, no Brasil tem esta peculiaridade: é fiscalizada menos ainda que o parlamento. Tem a imagem de honesta, mas é das suas relações corruptas que surgem os principais crimes. Foi a imprensa que legitimou Collor. Foi a imprensa que silenciou sobra a paridade demagógica do real com o dólar. Foi a imprensa que calou sobre o endividamento do Brasil na gestão FHC. É a imprensa que move a atual campanha contra Lula, não pelos defeitos do seu governo, mas pelas virtudes.
A imprensa é um poder sem fiscalização. Um poder medíocre, por que se corrompe por pouco, mas se corrompe livremente. Poder sem fiscalização, é o mais corrompido da República, seguido pelo Congresso e, depois, pelo Executivo e Judiciário. É também o mais cínico, pois controla o sistema de produção de sentidos e impede qualquer discussão sobre si mesma, qualquer fiscalização, qualquer responsabilização.
As relações de proximidade do governo com a imprensa ou a falta de coragem para resistir me convenceram a não votar em Lula. A baixaria que está sendo operado atualmente, neste final de campanha de primeiro turno, me levaram para o outro lado. Voto Lula. Sei que com nosso presidente operário vem gente como Pedro Henry e Waldemar Costa Neto.
Mas, honestamente, canalha por canalha prefiro Roberto Jeferson a Pedro Bial.

25 de set. de 2006

Chiclete

Ela não existe. Mas se existisse, estaria com 22 anos. Seria fã do RBD, teria o hábito de ligar a TV para ouvir o barulho, a qualquer hora do dia, assistiria ainda a Xuxa de manhã, dançaria copiando os clipes de música pop, de Shakira a Black eye peas e nunca perderia o Vídeo Show.
Se ela existisse, seria geniosa, como os personagens das novelas e falaria da vida no vídeo como se fosse a vida real. Ela seria egoísta, viveria eternamente em busca do seu próprio prazer e se insuflaria contra tudo que se opusesse a isso. Seria viciada em conexão: celular, e-mail, msn, orkut. Ela seria um subproduto da televisão, Peter Pan televisivo, que se recusa a crescer e traz consigo uma inocência que não é pureza, mas imaturidade, por que as crianças são os melhores consumidores, os mais influenciáveis. Apesar da idade, ela seria uma adolescente erotizada e infantilizada pelos meios. Seria educada para o consumo e nunca amadureceria.
Se ela existisse...
Mas ela não existe.

24 de set. de 2006

Adorniana I: o terceiro fracasso

Os frankfurtianos, sobretudo Adorno e Horkheimer, nunca foram de deixar pedra sobre pedra. E nunca tiveram dificuldade para encontra o que demolir. Não cabe entrar em detalhes, mas eles foram contundentes com os três modelos de sociedade que conheceram: o nazismo, o stalisnismo e o capitalismo.
Para eles, as três são projeções da razão iluminista e as três, cada uma a seu modo, são a realização da violência que a razão carrega. Esta violência se manifesta primeiro como domínio do homem sobre a natureza e, depois, como domínio do homem sobre o homem.
O nazismo e o stalinismo, via campos de concetração, e vias gulags, entre outras coisas, já manisfestaram sua faceta autoritária. O capitalismo também, mas se esconde, por ainda não ser história e por que ainda controla a produção de sentidos. Assim, não pode ser avaliado plenamente.
Mas os sinais são claros. A infantilização propagada pelos meios se manifesta nitidamente no orkut, msn e blogs, no sucesso do RBD, nas picaretagens infatilóides como os grupinhos de mulheres cantando em roupas sumárias. A Indústria Cultural envia mensagens simples que até uma criança de 7 anos entende e que fascina adultos que não conseguiram ir muito além dos 7 anos. Manter-se criança é não se civilizar. Não se civilizar é continuar violento.
Parafraseando Adorno: os defensores da coisa podem achar que os ícones da indústria cultural são inofensivos, infantis até. Mas, entre tantos outros malefícios, tratar a mulher como objeto é manter sobre seu corpo a opressão que nele opera por séculos. As moças dançando com pouca roupa são a desumanização da mulher e o convite a uma violência histórica, que a razão não superou. Pelo contrário, inventou meios de explorá-la para fazer dinheiro.
A democracia de massa é o terceiro fracasso da razão.

31 de ago. de 2006

Rosa azul

Te encontro agora em lances fortuitos ou casuais. Pequenos detalhes que antes poderiam significar nada ganharam sentido. 8 de março é o Dia Internacional da Mulher. Fui incumbido, então, de fazer um boletim comemorativo da data. Um dos textos que deveria escrever seria uma homenagem a uma mulher notável. Uma militante de esquerda que nasceu em 1870 e morreu em 1919; que foi intelectual do movimento proletário polonês e alemão, fundadora do PCA – Partido Comunista Alemão; que polemizou com Lênin sobre os destinos da revolução internacional; que lutou e morreu pelos trabalhadores. Seu nome: Rosa.
E corri escrever uma homenagem biográfica a Rosa Luxemburgo, não sem pensar no sentido que as rosas ganharam para mim desde que te vi, um dia, rosa azul da minha busca utópica.
Os cabelos loiros do Pequeno Príncipe fazem com que, para a raposa, a cor do trigo tenha algum sentido. Sempre gostei de flores. Hoje, mais que nunca, amo flores e uma flor em especial.

(carta escrita em 1997)

28 de ago. de 2006

Botões de rosa

A essa hora, você já deve ter recebido os botões de rosa. E eles talvez já tenham, silenciosos, começado a abrir. Mire-os e não verá movimento. Mas o movimento existe, imperceptível e surdo. Eu o calculei. Estas flores desabrocham em meu nome, por ti.
Um passo após o outro, tenho tentado ser meticuloso, sem cometer erros. Tento usar minha sensibilidade do mundo feminino para trazer-te a mim. Tento dizer o que é indizível. Que, se quero crer que meu destino é te amar como homem, me entrego da forma como as mulheres se entregam ao amor. Tenho muito medo do medo.
E já me vejo enredado nestes laços, nestes planos, nesta vida futura que só vislumbro. Me encontro com saudades dos dias santos. E todo dia será santificado se eu estiver do teu lado. Mas, sabe, tenho medo quando as coisas caminham assim, tão calmamente, como se não tivessem outro rumo a seguir. Tudo bem, por enquanto. Tudo calmo, como se a calmaria antevisse um maremoto.
Minha vida afetiva tem sido atribulada. Não quero errar de novo. Por isso, tenho medo, mas não desisto. Uma flor tem sido meu projeto mais acalentado nestes dias em que vivo sob pressão.

(carta escrita em 1997, após enviar botões de rosa em vias de desabrochar)

23 de ago. de 2006

Desejo

O desejo disse:
- Vá...
Eu não quis.
Ou quis, por que o desejo sabia.
Não fui.
Ele argumentou:
- És livre.
Pois sou mesmo.
Então, não medi.
Caminhei.
O desejo riu,
por que o desejo é o desejo.
Ele não aceita não.
É inofensivo, mas repete
sempre, a mesma frase.
Um dia, você o ouve.
Quando ele fala alto, porém,
todo resto parece mudo.
O desejo é o senhor de um reino sem muros.

14 de ago. de 2006

Da distância

Chove! As gotas batem na minha janela, fazendo um burburinho bom para ficar debaixo das cobertas e essas coisas gostosas que a gente pode fazer em casa, em nenhum outro lugar. As gotas escorregam pelo vidro, vão se juntando, numa previsível marcha. Miro-as.
Não sei por que, mas estas coisas botam a gente emocionado prá diabo. Acho que é esta mania de pensar em como seria bom se você estivesse aqui.
Chove! Quero cobertor, teu colo, teu rosto colado ao meu, tua boca, teu corpo quente. E, você, impassível, não sente, não vê, não mede a saudade que sinto, o espinho que carrego. Vem me embalar, cumprir, por fim, minha sina de estar indefeso em suas mãos, criança que cresceu e que ainda chora com cenas bregas de amor rasgado. Vem respirar o ar que respiro, tornar momentos patéticos instantes grandiosos.
Das desgraças do amor, a distância é das mais severas. E, no entanto, viver com tal fardo é que faz os escassos segundos em sua presença tão importantes.
A perspectiva de futuro não é muito diferente disso. Por muito tempo, se tudo der certo, te verei em fins de semana e nem mesmo em todos os sábados e domingos. De certa forma, é ruim. Mas pode nos ajudar a amar, mais e mais, estarmos juntos.

(carta de 1997)

11 de ago. de 2006

Ícaro, de Will Eisner

Para Gi

Sabia voar. Claro que sabia voar. Nunca tinha saído do chão, mas quando se lançava no ar, de braços abertos, ficava sem tocar a terra por meio segundo. Nunca mais que isso. O problema era a falta de arranque. Com ele, planaria pelo céu azul.
Não precisava nem de testes, nem de cálculos, nem de métodos. Ela sentia, por dentro, que sabia voar. Sentia-se solta, planando no ar vez em quando. Tinha a estrutura dos pássaros, com ossos leves.
E como sabia bem tudo isso, vivia feliz. De tantos, o destino fizera dela um ser especial, dera a ela o dom de voar. Vivia os dias assim. Para que olhar para o lado, se preocupar com as coisas miúdas, problemas do dia? Para que pensar na casa, que, de tão pouco zelo, ficava cada dia mais desorganizada?
Sabia voar.
Para que pensar em toda gente que falava com ela, se ela nem ouvia, apenas percebia que falavam? Falavam o quê? O que importa?
Sabia voar.
Para que pensar nos amigos antigos que sumiam dia a dia, sem que ela soubesse por quê? Para que se preocupar se os amores, aventureiros, não tinham futuro?
Ela sabia voar.
Qualquer coisa, subia alto numa montanha, pulava e partia, batendo os braços. Os problemas ficariam no chão, pesados. Quem sabe voar não precisa se preocupar com o futuro. O futuro de quem sabe voar é voar. E é o chão que sustenta todos os problemas. O ar não.
Ficava a pensar nisso, pés no chão, mas a cabeça já voando. Ela percebia que estava longe, que via o mundo por cima. Nestas horas, sua certeza aumentava. E aumentou tanto que um dia começou planejar. A colina alta, o caminho íngreme, mas não teve dúvidas.
Num dia de sol, com pouco vento, pôs se a subir, a pé, pois quem voa não carrega pertences. Cansou, parou, tomou água, não quis comer para ficar mais leve, e continuou a subir. Subiu, subiu, subiu... O dia já findava quando atingiu o topo e encontrou o ponto perfeito para seu salto, para ganhar o impulso que faltava lá embaixo. Descansou um pouco, mas não quis perder tempo. O sol baixo já anunciava seu poente. Livrou-se, tal qual Diógenes, o filósofo, da cumbuca que trazia para beber água. Não sentia fome, pois confiava. Pássaros sempre têm o que comer.
Olhou o sol, mirou o lugar do impulso e planejou o que faria quando chegasse ao destino do vôo, mesmo que não soubesse onde era. Então, sem vacilar, correu e pulou, de braços abertos.
A 800 metros do chão, tentou planar, apenas esticando as mãos. Até achou que planava, mas, 100 metros abaixo, já sabia que continuava caindo.
A 700 metros, lembrou que os pássaros sempre batem as asas antes de planar e se pôs a bater os braços. Sentiu que voava, mas 100 metros depois, percebeu que não.
A 600 metros começou a pensar no que podia estar errado, pensou que o vento era pouco, mas não seria obstáculo. Quem já ouviu falar de pássaros que só voam em dias de ventania? Então lembrou das roupas, é claro. Qual alado usa roupas? Começou a se despir.
A 500 metros, tinha tirado a calça e o tênis. Já se sentiu mais leve.
A 400 metros, tirou as roupas de cima e se sentiu bem. Muito bem.
A 300 metros, voltou a bater os braços. Em vão. O cabelo longo lhe atrapalhava e a velocidade era muito alta, mais de 60 quilômetros por hora, pensou. Amarrou o cabelo, pois já não tinha nada com que prendê-lo.
A 200 metros, ainda sem voar, pensou que talvez estivesse errada. Talvez não pudesse voar e tivesse sido prudente trazer um pára-quedas. Mas não se assustou, pois tudo haveria de ter solução.
A 100, depois de pensar rápido, lembrou que o chão nunca tinha lhe feito mal. Convenceu-se que não seria agora, com ela tão leve, tão ela, tão confiante de si. Foi só por isso que a preocupação, leve e ligeira que passara pela sua cabeça, desvaneceu.
Então, sorrindo e nua, abriu os braços para carinhar o chão amigo.

10 de ago. de 2006

Da impossibilidade do beijo

Sento na cadeira, depois do banho, cabelo molhado e samba-canção de seda, e fico a pensar-te. Nesta hora em que o dia fica calmo, a mente já não se ocupa de afazeres tais que a distraem de ti. E volto, como sempre volto, a pensar em você. Não, assim, como uma imagem de santa, uma epifania. Mas como uma mulher sem matéria, sem cheiro, sem corpo, mas que sei existir. Por isso insisto.
E da tua imaterialidade nestes lugares por onde ando, vou tecendo história, planos, momentos, vida a mim legada e contigo dividida. Vou te imaginando em cada pequeno detalhe. Vou calculando suas reações.
- Será que ela gostaria?
- Será que ela riria?
- Será...
- Será...
E de "serás" vou vivendo ao teu lado.
Tudo isso, pela impossibilidade do beijo. Pois se o beijo fosse possível, então eu teria-te, mulher com corpo, cheiro e matéria. E se o beijo fosse negado, então partiria, assim, como quem parte sem corpo, sem cheiro, sem matéria.
O beijo é um passaporte, uma ponte, uma aliança. É, de certa forma, um consentimento aos exageros do amor. É uma garantia. O beijo é poder dizer, nos teus ouvidos, atrocidades como: "nunca mais te deixarei partir".
Sem o beijo, ainda não há nada.
Todo o meu cortejo, as estratégias de conquista, as flores, as cartas, as palavras medidas ainda não atingiram o objetivo pensado. Até lá, vivo esta angústia. Até lá, planejo o momento do beijo possível. Cobiço tua boca delicada, tua voz nos meus ouvidos, tua mão na minha.

(carta escrita em 1997)

7 de ago. de 2006

Minha alegria para te ferir

Quando eu estava no chão, ela riu. Só me levantei para cessar aquele riso. Mas ela continuava lá, com ar superior. Foi só por isso que sorri, com os dentes partidos. Ela olhou para mim:

- Caminha!

Obedeci, porque a ordem era um desafio ou porque me acostumei a me mover pelas palavras dela. Virei as costas, não olhei para trás, mas... como senti vontade! Então fui curar as feridas, não porque quisesse. Por mim, ficava ali, sem nada fazer, entregue. Vi no rosto dela certa felicidade de me ver cheio de hematomas. Ela achou engraçado meu sorriso torto, meu rosto inchado. Mas eu vi como a incomodou que eu risse. Foi só por isso que sorri.
Um dia, refeito, eu a encontrei, na rua, mais humana, mais comum, igual a mim. Ela me viu. Ficou assustada. Eu ali inteiro, eu que tinha apanhado tanto, não haveria de ter esquecido. E não esqueci. Meio sem jeito, ela tentou fingir que não tinha me visto. Cheguei perto, armei meu melhor sorriso.

- Bom dia. Tudo bem com você?

Ela respondeu sem jeito, com entusiasmo forçado:

- Sim... E você?

Esperei tanto para dizer isso, para me vingar. Não tive dó:

- Huuum... Estou muito feliz.

3 de ago. de 2006

Jornalismo menor

Uma das maiores dificuldades na defesa da regulamentação da profissão de jornalista tem sido a resistência de segmentos da própria categoria. Normalmente, são segmentos minoritários, mas, ao se posicionarem publicamente, transmitem a idéia de uma categoria dividida sobre o tema. Para piorar, muitos jornalistas com maior visibilidade, seja pela carreira longa seja pela posição de chefia que ocupam, fazem parte deste segmento.
Estes jornalistas levantam uma série de argumentos, difíceis de sintetizar, mas é possível enxergar os eixos mais reincidentes. Normalmente, contra a regulamentação baseada em uma formação específica, opõem uma série de reducionismos. Os principais são:
1) Redução do todo às partes: há muitas atividades desempenhadas por um jornalista, como redação, pauta, edição, fotografia, assessoria. Isso é comum em outras profissões, como a dos médicos (ortopedistas, cirurgiões, anestesistas, dermatologistas) ou dos advogados (criminalista, juiz, promotor, delegado). Não é difícil, em nenhuma destas profissões, dominar partes do conhecimento. No jornalismo, é possível que alguém aprenda a redigir um texto com lead em pouco tempo. Isso serve como argumento para dizer que quem sabe fazer isso é jornalista. O argumento não convenceria nenhum médico ou advogado diante de um sujeito capaz de diagnosticar alguns problemas de pele ou de fazer uma petição na Justiça do Trabalho. Entre os médicos e advogados, a competência parcial não faz um profissional; faz um charlatão. Entre os jornalistas, há quem defenda que a parte é o todo. Aplicada a mesma lógica à medicina, um charlatão bem sucedido junto ao público fazendo diagnósticos de problemas de pele seria um médico em pleno direito de exercer a medicina.
2) Redução das práticas profissionais a técnicas: o processo de tecnificação do texto, a partir de 1951, no Diário Carioca, e de 1956, no Jornal do Brasil, afastou o jornalismo da literatura e vulgarizou procedimentos do jornalismo estadounidense. A isto, como conseqüência, sobreveio uma noção de que o texto, tecnificado, é resultado de pura técnica. No entanto, a noção de técnica não explica, no todo, as práticas jornalísticas. Por esta concepção, o jornalismo deveria ser pensado em termos de eficácia, produtividade e padronização na obtenção e tratamento de informações. Não se trata disso. Checar informações, por exemplo, não é apenas um procedimento técnico, mas uma prática profissional eivada de valores jornalísticos e deveres éticos. Ou seja, a checagem não é apenas um procedimento de obtenção de produtividade. É, antes, um dever profissional, respaldado por uma categoria. Dever ético em duas pontas: a da fonte e a do leitor. Assim, o procedimento não pode ser substituído, pelas empresas, por outro que seja mais eficiente. A prática, não sendo técnica, não pertence à empresa, mas aos jornalistas e ao seu universo de valores. O texto não pode resultar de um mero preenchimento de lacunas, por mais que a cultura e manuais tenha contribuído, e muito, para esta noção.
3) Redução das competências profissionais ao talento para a escrita e à propensão à leitura: velhas práticas assombram o jornalismo. Se, no final do século XIX até boa parte do XX, jornalismo e literatura caminhavam juntos, sendo homem de imprensa e literato funções intercambiáveis, isto já não é mais válido. Não basta mais saber escrever e ser erudito para ser jornalista. Isto tanto se deve à complexidade que os instrumentos utilizados pelos jornalistas adquiriram, quanto à própria complexidade social e ética e hegemonia que os mídias ganharam no nosso tempo.
4) Redução do jornalismo como deve ser ao jornalismo como ele é: esta redução é das mais falaciosas. Se nas três anteriores é possível antever uma discussão sobre o que é jornalismo, nesta há apenas um raciocínio falso. A profissão deveria ser algo acessível a qualquer sujeito, com formação ou não, por que qualquer um faz jornalismo com a qualidade que ele é feito hoje. Apliquemos a lógica a outra área para demonstrar seu absurdo. Se os engenheiros, reiteradamente, construíssem casas e prédios que desabassem, por esta lógica construir casas que desabam seria função típica de um engenheiro. Absurdo. Quando se trata do jornalismo, vale. Quem defende isso? Qualquer um que diga que não precisamos de diplomas para exercer o jornalismo por que a qualidade do ensino é muito baixa. Então, se os jornalistas estão sendo mal formados, para que faculdade? Ser mal formado é tornado, portanto, inerente ao jornalismo. A melhoria da qualidade de formação é descartada. Corta-se a cabeça por causa de uma enxaqueca.
5) Redução do jornalismo à opinião: está também é falaciosa, mas fundamenta a liminar concedida pela juíza Carla Rister. O jornalismo, há muito tempo, não é o exercício diário da opinião. Aliás, emitir opinião não é função jornalística. É verdade que alguns jornalistas têm o estatus de supercidadãos, pelo direito de opinarem, muitas vezes sobre tudo. No entanto, supers ou não, opinam na condição de cidadãos, a quem cabe o direito legítimo de opinar. Jornalista faz análise, explica, busca informações para elucidar algum acontecimento. Quando opina, já não exerce mais função jornalística, o que não significa que não possa opinar. Função jornalística é editar opinião, buscando pessoas respaldadas para falar ou representantes de correntes importantes de pensamentos. Nisto, exerce a função mais importante do jornalismo depois de informar: viabiliza o pluralismo liberal de opiniões.
Se não for reduzido, o jornalismo é, necessariamente, atividade sustentada em sólida formação teórica e ética e exige competências profissionais sólidas. No mundo, esta tendência é evidente, em vários formatos, na maioria deles sem a exigência legal de diploma, é verdade. Onde existe jornalismo, no entanto, é preciso jornalista. O problema é que no Brasil os jornais produzem jornalismo de vez em quando, para justificar o resto do tempo em que estão fazendo política, muitas vezes das mais baixas. Com tão pouco jornalismo ou com tantos simulacros de jornalismo, são necessários poucos jornalistas ou apenas simulacros de jornalistas. Essa é a questão de fundo. No Brasil, os jornalistas querem fazer jornalismo; as empresas jornalísticas, nem tanto.

31 de jul. de 2006

Silêncio

Quedou silente. Depois, nunca mais ouviram uma palavra da boca dela. Chamaram médicos; depois, padres; depois, macumbeiras, feiticeiras, ciganas. Acenderam velas, depois xingaram. Deus continuava mudo; ela também.

Com o tempo, a irmã, desesperada, pôs-se a conversar com ela, todos os dias. Esperava resposta. Mas, depois, se acostumou com o silêncio. Falava sozinha, contava o dia, e respondia por ela:

- Ah, você também acha?

Ou:

- Não. Você não entendeu.

Passava os dias assim, falando com ela, muda, e dialogando com o silêncio. Depois, começou ler livros para a irmã, ainda que ela nada dissesse. Silenciosa, ela ouvia. Silenciosa permanecia.
Em silêncio, saía de casa, pegava o trem e ia para o centro da cidade. Depois voltava, lendo um livro que comprara numa banca da rua central. Não dava informações, não falava com ninguém, mas, no trem, quase ninguém percebia.

Em casa, a mãe achava que ela tinha enlouquecido. “Nada errado, tudo funciona. E essa menina não fala”. Achava que a outra filha tinha ficado doida também de falar a esmo para alguém que não respondia, ainda que parecesse entender. Alguém que não fazia um gesto sequer. Por fim, a mãe se pôs a freqüentar uma igreja, todos os dias. Depois um bar, onde bebia no meio dos homens e falava sem travas na língua, sobre qualquer bobagem. Então, fez sua rotina só chegar em casa depois que todos tinham dormido. E a casa estava quieta.

O marido não gostou. Homem simples, se viu entre três mulheres estranhas. Não entendeu e saiu da casa. Pôs-se no mundo, saiu sem direção, sem destino, pois que os homens não entendem e, quando se perdem, se entregam sem freios ao descaminho.

Mesmo assim, ela não falou. Mas parecia aflita. Quando a mãe deu para beber, chorou. Quando o pai saiu de casa, se trancafiou no quarto por uma semana e, por sete dias, não foi ao centro. Depois saiu e, triste, retomou a rotina. Por fim, acostumou-se a não ver nem pai, longe de casa, nem mãe, sempre rezando e bebendo. A irmã fingiu de novo. Ignorava que a mãe bebia. Perguntava sempre:

- Onde foi a mãe hoje?

Como se a mãe, por coincidência, tivesse sumido naquele dia, mas fosse aparecer no próximo. Daí ela perguntava de novo:

- Onde foi a mãe hoje? Preciso dela, mas pode ser amanhã também.

Parece que nem deu pela falta do pai. Um vizinho batia, ela respondia:

- Volta mais tarde. O pai não está agora.

E levava a vida, sem ninguém com quem falar. Ouvia música, via TV, varria a sala, lia para a irmã, deitava de noite e gritava:

- Boa noite, pai...

- Boa noite, mãe...

- Durma bem, irmãzinha.

Assim passaram meses. Os vizinhos estranharam, falavam pelas ruas, nas bancas de jornal, nas padarias de manhã. Mas ninguém ousou entrar lá e perguntar o que acontecia. Parecia sagrada a casinha de esquina, onde viviam três mulheres doidas. Pensaram em ligar para a polícia, para denunciar o sumiço do pai. Sabe lá Deus o que podem fazer três mulheres doidas. Depois, tempo vai tempo vem, esqueceram e deixaram a casa em paz.

A moça na janela sorria, mas não falava. Ficava ali, por vezes, o dia inteiro, olhando. A vizinhança criou o hábito de cumprimentá-la com um gesto, mas sem palavras. Ela parecia responder. A vida parecia, assim, normal.

Um dia, desavisado, ele passou por ali e, constrangido, disse, sem saber que a casa era sagrada:

- Bom dia Silene. Ainda zangada comigo? Eu voltei, viu...

A moça riu, olhou terna para ele:

- Bom dia, João. Brava não... Tenho algo para te dizer. E só para você.

28 de jul. de 2006

Quos amo

Quos amo, arguo et castigo. (A quem amo, advirto e corrijo)

“Concordar e amimar nada custa. Contradizer e aconselhar, isto sim. Amantes nunca dissentem um do outro. Mas esposos, que não se saibam contrariar e advertir, é que não se sabem amar. É o que vai do amor lícito ao ilícito, do amor puro ao impuro, do mundano amor ao amor santo. Um, todo carne, todo culpa, nasce do apetite, nele se ceva, e com ele acaba. Por isso é só blandícias, lisonja só e só mentira todo ele. O outro deriva do coração, e no espírito se acendra, pelo que vive de sinceridade, zelo e devoção, e todo ele é fé e confiança, todo estima e desvelo, todo escrúpulo e verdade. Esta a condição do amor casto, do amor fiel, do amor consagrado: o amor dos pais, o amor dos bem-casados, o amor da pátria, o amor de Deus.” (Rui Barbosa, em A imprensa e o dever da verdade)

Rui pensa a crítica por profissão da imprensa ao Estado e aos governos como alto ato de amor, igual à crítica que dedicamos a quem amamos. Rui tem razão. A crítica é um ato de amor, altíssimo, dos mais nobres, só permitido e só dado a quem mais amamos. Não aprendi com Rui isso. Aprendi com Faraco, meu orientador do mestrado. Ser amantíssimo, sempre foi crítico comigo, sem rodeios, sem palavras agressivas, mas sem complacência. Aprendera com Bakhtin e sua demolidora e amorosa crítica a Saussure, em Marxismo e Filosofia da Linguagem.
Complacência é dos piores gestos de desamor e se opõe à rigidez com que olhamos quem amamos. Tentei aprender e levar isso para a vida, não zangando nem com a crítica mais mesquinha, mais ferina e mais desamorosa. Em momentos da vida, fui alvo delas. Muitas vezes, para compensar, fui beneficiado pela crítica aguda e amorosa. Todas as críticas servem ou, no mínimo, devem ser ouvidas. Também busquei ser rígido com os que amo. Como professor, amo meus alunos exigindo deles tanto quanto meu coração mole permite. Com as crianças, sou afável, brincalhão, infantil e inflexível. É meu aprendizado para ser pai. Com meus irmãos, nenhum centímetro de retrocesso na crítica.
Crítico quem amo; critico por que amo. Ouço os que amo. Ouço quem me observa, mesmo que não seja alguém tão próximo. Ouço críticas de todos os lados. Mantenho os ouvidos abertos, por que são formas de “amor casto”.
Nos relacionamentos amorosos, é fácil o amor se tornar desamor e a crítica virar ofensa. Por isso, muitas vezes a paz eterna entre casais é vista como exemplo de relacionamento estável, pacífico, bem-sucedido. Pode esconder, porém, desprezo. Se não importa, não criticamos. Não dizemos nada. Há várias formas de um relacionamento fracassar: uma pelo excesso de crítica, de agressividade; outra pela falta.
Quando falta crítica, muitas vezes o elogio é a arma mais demolidora, mais insidiosa. É uma das armas de Iago para destruir Desdêmona e Otelo.

14 de jul. de 2006

Desalinho

Venta muito por aqui. E o vento desalinha meu cabelo. O calor é muito forte, mas o inverno começa a chegar, e o clima fica mais ameno. Tudo é longe. Caminho longos trechos para ir à panificadora, ao banco, aos sebos do bairro, às bancas de jornal. Nestas caminhadas, no meio da solidão, imagens me perseguem, inclusive a sua. E fico tentando alinhar os cabelos, mas o vento desalinha meus pensamentos também. E deste torvelinho de saudades já não consigo me desenredar.

10 de jul. de 2006

Nós, os melhores do mundo, derrotados

Cafu desembarca no aeroporto de São Paulo. Um repórter de TV pergunta-lhe qual lição o lateral tirou desta Copa. Cafu, de pronto, diz que aprendeu que “nem sempre o melhor vence”. Após a derrota para a França, não achei ser vivente que defendesse que o Brasil jogou melhor, que o acaso nos prejudicou ou qualquer outra justificativa. A França venceu com méritos, jogando melhor, o que só aumentou nossa fúria.
Mas Cafu não se refere àquele jogo. Pode ter posição divergente da média das pessoas sobre o desempenho da seleção contra a França, mas sua crença na superioridade dos brasileiros tem raízes mais sólidas, tem raízes históricas. O Brasil ganhou 5 copas, teve Pelé, o maior de todos os tempos (pelo menos no Brasil), teve Garrincha, tem o melhor do mundo (Ronaldinho Gaúcho), outro que foi melhor do mundo duas vezes (Ronaldo), o melhor do campeonato francês (Juninho), o jovem mais promissor (Robinho). As outras seleções têm bons jogadores. Nós temos 11 craques no time titular e mais uns tantos no banco de reservas.
A seleção tropeçou na própria empáfia, que começou antes, bem antes, quando Parreira dizia que eram todos contra o Brasil. A arrogância não foi embora nem depois das evidências de perder jogando pior, de ter feito uma Copa medíocre.
A resistência tem solo firme por que a crença na qualidade superior atávica da seleção não tem origem e nem se extinguem com Cafu e Parreira. Ela está em nós, que julgamos viver no país do futebol, celeiro de craques insuperáveis, único lugar onde Pelé poderia nascer.
É verdade que somos pródigos em produzir bons jogadores. O mercado europeu invadido por brasileiros é prova pragmática disto. Mas o menosprezo pelos demais é ridículo. Os comentários de Galvão Bueno sobre os jogadores de outros países revelam duas coisas: desconhecimento e prepotência. Ele disse, de Ribery, revelação francesa, que era um jogador ruim, mas que corria muito. Ribery tem 23 anos e foi um dos poucos jovens que tirou posição no time titular de um jogador experiente na seleção de Domenech. Menos, Galvão!
O sentimento está por aí, debaixo da nossa pele. Nós somos os melhores do mundo e, por isso, não admitimos a derrota. Pior ainda quando perdemos sem refutação. Este sentimento, esta arrogância de um país trágico numa das poucas áreas onde se sobressai talvez seja nossa forma de termos orgulho da brasilidade. É nos momentos esportivos que nos irmanamos como nação. É nestas horas que, apesar de tamanha diferença social e econômica, de tantos brasis, de tantas culturas, de tantas formas de ser brasileiro, nos vemos como um povo só, iguais. Irmãos. Todos filhos da mesma mãe gentil. E, todos nós, eu, você, Parreira, Cafu, arrogantes.
Este sentimento é canalizado a cada quatro anos por quem faz da copa um negócio. Nitidamente, no Brasil, a Globo e os anunciantes, como Nike e o guaraná Antarctica. Os anunciantes ainda estão num papel legítimo, se consideramos a publicidade uma prática legítima (não é, necessariamente, minha posição). Já a Globo faz o de sempre, desde a ditadura. Eugênio Bucci, em Brasil em tempo de TV¸ afirma isso com todas as letras. A TV fez dos momentos esportivos grandes festas do sentimento de ser brasileiro, por que estamos unidos, via TV, torcendo pelo mesmo time. Somos todos brasileiros, mesmo que minha camisa dry fit não tenha nada a ver com a roupinha de algodão amarela puída que meu irmão de nação veste. Sou um burguês do povo.
Galvão nunca sairá de onde está. Deveria narrar, mas torce. A Globo deveria cobrir a Copa, mas a promove. Quando os limites entre jornalismo e publicidade se diluem, o resultado é este: arrogância canalizada, promovida e estimulada. Cafu e Parreira apenas dão voz às crenças que plantaram em nós e que foram tão bem exploradas pela TV. Por isso, nada soa tão cínico quanto as matérias da Globo criticando a arrogância da seleção, como um dos sete pecados capitais ou um dos setes erros. É um lava a mão. A vitória é nossa; a derrota é deles, diz a Globo, nas entrelinhas.
A tudo isso, chamam de jornalismo. Nada é. Por que jornalismo não é aquilo que se prática à semelhança do que é jornalismo de verdade. Não é só a casca, mas as condições fundamentais nas quais ele se realiza. Jornalismo supõe independência. Quando o repórter trabalha pelo interesse comercial do seu patrão já deixa a seara do jornalismo. Entra naquilo que chamo forma-jornalismo (algo que tem formato de jornalismo, mas não é).
Triste país este que tem que aceitar, agora, depois de tudo, que tem uma seleção ruim feita de excelentes jogadores. E que tem um jornalismo indigno deste nome, feito (tirando as exceções, como Galvão Bueno) por excelentes jornalistas.

8 de jul. de 2006

DD

Um Dia (acho) Descobri o nome Dela: DD. Depois percebi o vento que Desalinhava os seus cabelos nos dias de sensaboria. Ao redor Dela, torvelinho. Tanto, que ao entrar na casa, logo as cortinas farfalhavam e acho que foi assim que intuí seu nome: num sussurro. Era assim também que ela se fazia notar, até para mim que, sistematicamente, fechava os olhos.
E, de escudar-me em pálpebras, ouvia só palavras:
- “Transformada, diante dos meus olhos, de torvelinho em furacão.”
- “Tanto de meu estado me acho incerto que em vivo ardor tremendo estou de frio.”
- “A nossa casa, Amor, a nossa casa! Onde está ela, Amor, que não a vejo? Na minha doida fantasia em brasa Constrói-a, num instante, o meu desejo!”
- “Teus olhos são duas sílabas Que me custam soletrar,”
Algaravia e suspiros:
- Eu...
- ...
- Se...
Do burburinho, Descobri que, além dos cabelos cuidadosamente Desarrumados, nada sabiam Dela, nem seu nome. Eu sabia. Talvez em erro, eu sabia como chamar aquele torvelinho de fios negros. Nunca vi nela a Divina de quem falavam, mas sabia-lhe o nome.
Neguei o quanto pude sua Divindade, mesmo quando estava perto (nestas horas Difíceis):
- Bom dia.
E eu gastava a tarde toda Descobrindo por que ela me dissera “bom dia”.
No fundo, eu sei, ela não era nada além de DD. Era uma Deusa. Eu sou ateu (juro por Deus). E, assim, num pedestal, Deificada, foi se tornando, tal qual uma santa Desejável e inacessível, solitária. Encostada silenciosa na parede ou movendo ares, quase sempre séria ou triste, Deram-lhe o fardo de não ser mortal. Assim, tornou-se uma estranha entre os mortais, petrificados de admiração e medo.
E, não por acaso, lançaram-lhe ao Desterro. Foi nestas ilhas Desertas, cabelos ruidosamente Desalinhados pelo vento carinhoso, que a encontrei, transformada, Diante dos meus olhos, de torvelinho em furacão. E, nestes dias, tive certeza do seu nome.
Ninguém me contou!
Ela mesma gostava do Desterro. Estava livre do risco de parir semideuses. Distante dos adoradores, poderia se entregar a um outro Deus. Adotou para si o nome de Distância e planejou a Descendência.
Sou só um mortal. Vi nela só uma mortal. Mas, nas ilhas, tive que reconhecer. Ela era eterna. Por mortais, acreditou ser Deusa, aceitou o Desterro e quis parir outros Deuses. Da pureza da linhagem, fez seu karma.
Que Deus me perdoe, mas vi nela só uma mortal. E só por causa da minha Descrença pude lhe dar um nome que qualquer mortal pode pronunciar: diana.
Então, herege, Desejei sua pele.

(Estou atrasado na atualização do blog, mas meu PC deu pau. Por isso, o atraso.)

2 de jul. de 2006

O sonho já é teu

Prá ser sincero, o dia ainda nem virou. E como são estranhas as horas da madrugada! Em verdade, agora é um outro mundo. Não há ninguém nas ruas, a vida está estacionada. Mesmo quando as pessoas estão acordadas e juntas, não são as mesmas pessoas. A madrugada recria o mundo; o breu mistura-se magicamente aos outros elementos para extrair deles sua segunda face, mais solitária e humana.
A solidão é, aparentemente, um mundo sem dor porque o outro não existe. E toda angústia provém do alheio, aliás como todo o resto. Deveria ser só eu, sem ar, sem sangue, sem dor, mas trago o outro dentro de mim.
Tua voz é a que berra e ecoa em meu peito agora e reproduz-me este fantasma madrugueiro. A falta de sono me afasta da cama; você aniquila de vez qualquer perspectiva de repouso.
Deixa-me dormir. Amanhã, o movimento dos dias ensolarados e ocupados me trará de volta o mundo dos outros. A rotina, a fumaça, as vozes, os carros e as buzinas poderão então abafar sua voz e me permitir seguir como se você fosse nada. Ou quase.
Não posso viver por você o tempo todo, dias, noites e madrugadas. Você não quer que eu viva em tempo algum. Posso tentar te matar, te fazer passado. Ao menos por uma noite, ao menos para poder dormir. Mas não sei se consigo.
Por favor, deixe-me o sono, pois o sonho já é teu.
Boa noite, sereia!

(Carta escrita em 27/11/1995, às 2:40 hs)

1 de jul. de 2006

As meninas cegas

Matrix é uma fábula sobre a irrealidade cotidiana, um mundo que aparenta uma verdade natural que, no entanto, oculta a concretude da opressão de humanos por máquinas. Matrix não existe. É só cinema, mas é uma fábula e, como tal, fala, a seu modo fabuloso, dos dias, das horas, do cotidiano da vida não-fabulosa. Matrix segue a linha de Descartes e a dúvida hiperbólica e de Marx e a ilusão ideológica.
Nada é mais insidioso e cegante que naturalizar a história. As meninas cegas fazem isso. Concordo plenamente com minha argüidora anônima do texto anterior (Ensinem as meninas) que é difícil fazer uma análise profunda estando na pele de um homem, mas discordo que tenha culpado as mulheres pelo machismo.
Meu ponto de vista, que talvez não tenha ficado claro, é que o processo histórico que produz o machismo em homens e mulheres se naturaliza de formas diferentes em cada um. Para os homens, parece natural ser machista. Há um cinismo biológico que defende a poligamia como conseqüência natural da imensa quantidade de espermas que um homem produz. Milhões de espermas conduzem os homens a, naturalmente, buscar várias parceiras, por que estão aptos a fecundar diversas fêmeas. Já a mulher produz apenas um óvulo por mês. Logo, é feita para apenas um parceiro. É uma justificativa machista para condenar a poliandria. Besteira deslavada, evidentemente, como boa parte das tentativas de biologização da cultura.
Homens são poligâmicos e machistas por que lhes é ensinado, desde pequenos, serem assim. Mulheres são educadas para a monogamia. Os festejos de um e outro antes do casamento indicam isso claramente. A mulher faz chás de panela, prepara-se para a vida a dois. O homem faz despedidas de solteiro, uma saída em grande estilo da vida de caçador. Uma olha o futuro; outro, o passado. Ambos reproduzem um padrão de relacionamento entre homens e mulheres que é machista. A despedida de solteiro é machista, mas a aceitação do papel de rainha do lar também é.
Na mulher, a naturalização de tal machismo se dá pela negação de sua existência. As meninas são educadas, como escrevi antes, para não ver. As reações ao meu texto, exceto a quarta, são sintomas disso. O ataque ao machismo das mulheres é tomado como, ele próprio, machismo, o que pode ser. Mas isso não exclui que a reação seja, também, a confirmação da negação de ver: mulheres são machistas.
Tanto pior quando são o elemento fundamental da educação dos filhos nos primeiros anos de vida e repetem cegamente a formação para um padrão machista de relacionamento. Elas dão bonequinhas e fogõezinhos para suas filhas e carrinhos e bolas para os sues filhos ou aceitam isso como natural.Ninguém tem mais ou menos culpa. Mas uma diferença é fundamental. O machismo dos homens é evidente, está posto, é um inimigo a bater. É um inimigo para mim mesmo, que tento enxergar suas manifestações para combatê-lo dentro de mim, já que fui educado para ser macho, caçador, conquistador. E nem cheguei a ganhar carrinho e bola quando era criança, pois perdi o pai aos 3 anos de idade.
O machismo das mulheres, tanto pior, é um inimigo oculto, que se esconde e, neste momento, é mais perigoso. É verdade que esta prosa é recente. Data dos anos 60, dos movimentos de mulheres que vinham no bojo da contracultura. Mas estes mesmos movimentos sempre tiveram a premência de atuar em duas frentes: ganhar os aliados e combater os inimigos. Ou seja, por um lado convencer as mulheres sobre a seu direito à igualdade; por outro, disputar com os homens os direitos das mulheres. Deste processo, surge, por exemplo, uma legislação que condena e cria mecanismos para combater a violência doméstica contra a mulher.
O machismo das mulheres se manifesta de diversas formas, naturalizadas, evidentemente. Uma delas, é o comportamento de quem espera no jogo da conquista, que era o que queria apontar no outro texto. As meninas cegas acham que é assim, que é natural, que comandam o jogo por que escolhem. Mas não entendem que quando o homem consegue beijos ou sexo da mulher, ele ainda não está conquistado. Ele ainda não a escolheu. Mas, para ela, normalmente a conquista está feita. Muito mais as mulheres que os homens esperam a ligação no dia seguinte. Nem sempre é assim, mas é assim na maior parte dos casos.
Vejo tudo isso para escolher, para viver conforme os princípios nos quais acredito e que, muitas vezes, não são os mesmos que aprendi desde pequeno. Evito as mulheres machistas, da mesma forma como sou totalmente inábil para a conquista noturna de fêmeas estranhas. Sempre senti, desde a adolescência, a pressão para ser macho, o que é uma violência simbólica muitas vezes. Há uma música da Plebe Rude que sintetiza esta pressão na noite. Chama-se Johnny vai à guerra:

Johnny vai à guerra outra vez
diversão que ele conhece bem
Johnny vai à guerra outra vezenquanto que a trégua não vem (não vem...)
Você os ouve? Estão lá fora!
Você os vê? Estão lá fora!
Seus aliados, estão lá fora!
Contra você!
E a trégua quanto tempo que eu espero
E a trégua quanto tempo, não vem (não vem...)
Agora a noite terminououtra batalha foi ganha
Mas ainda restam outras guerras
outros fins de semana
Mas ainda restam outras guerras
outros fins de semana
outros fins de semana, outra batalha,
outros fins de semana,
outros fins de semana
Nunca!

Para mim, seria muito bom viver num mundo menos machista, por que não quero ser medido pelas vitórias neste campo de batalha. Não quero esta guerra. Não acredito nela. Mas faço minha parte ao tentar fazer que as meninas cegas vejam. São as mulheres, sobretudo, que devem entender as questões de gênero. Afinal, são elas que precisam que as coisas mudem, não os homens.
As meninas cegas me vêem como alguém que está do outro lado, mas sou um espião que conta o que os homens dizem quando as mulheres não estão ouvindo. Se me vêem como quem compartilha destas posições, é pena. Machista sou, como sou preconceituoso. Mas sou cada vez menos quanto mais tenho clareza desta condição cultural da qual não escapo. Pena que as meninas cegas só vejam machismo em mim. Só eu estou atado à cultura do meu tempo.

29 de jun. de 2006

Ensinem as meninas

Há um diálogo impressionante em Closer – Perto demais, em que o personagem de Clive Owen diz que as mulheres não entendem a guerra por que elas são o território. Não por acaso, o texto é acompanhado por imagens de uma boate. Na balada, esta lógica, que as mulheres não entendem, é evidente. Abordar uma garota é um procedimento de guerra, cheio de preparativos até a missão diplomática e a invasão do país alheio.
A conquista da fêmea pelo macho é um jogo de sedução, cheio de protocolos, estratégias e conjunturas. Na adolescência, o jogo, por vezes, tem requintes de crueldade. Há mulheres que se especializam em atrair os homens para poder rejeitá-los, como se o importante fosse ser desejada. E ponto.
O jogo tem mudado, é verdade. As mulheres estão menos passivas. Começam a assumir isso como um direito de fêmea, abordam os homens, dão o primeiro passo no jogo. Não entendem a guerra, mas participam dela. É um avanço no comportamento? Longe disso. As mulheres não questionam o comportamento dos homens, apenas o repetem. A corte (a conquista cortejando as mulheres) é um avanço em relação ao tratamento da mulher como bem de posse, transmitido do pai para o noivo ou, antes disso, como parte dos despojos de conquista. Violentar as mulheres, como nas guerras medievais, tomá-las à força já não é um comportamento aceito. É crime.
Olhamos para o passado como bárbaro, irracional e opressor das mulheres. Não vemos, porém, o tipo de opressão que a corte impõe sobre ambos os sexos, mas, sobretudo, não vemos as armadilhas impostas às mulheres. Os homens, na competição com seus pares, têm a conquista como régua da masculinidade. Eles se gabam entre si das fêmeas que levaram para a cama, fazem contas, placares. Valorizam a variedade e a intensidade da conquista. Em outras palavras, é mais macho quem come mais mulheres.
Por trás deste comportamento reside um machismo indisfarçável, mas poucas vezes percebido. A conquista pressupõe o conquistador (homem) e o território conquistado (mulher); a caça e o caçador. Nenhum país pode ter dois governantes, mas um governante pode ter diversos países. Os homens agem assim. Conquistam, pilham, partem para outro. Valorizam, entre si, a multiplicidade de parceiras, as conquistas, sinal de virilidade. As mulheres são censuradas por se comportarem assim, muitas vezes pelas próprias mulheres. Um caçador pode ter várias presas. As presas não podem ser caçadas por vários caçadores.
Ensinam as meninas a se comportarem assim e a defenderem a monogamia, o amor eterno. Ensinam a elas o que é mais conveniente aos homens. Para eles, a poligamia não é censurada. Pelo contrário, é enaltecida. A revanche vem, como hoje, pela repetição do comportamento. Os homens, agora, são objetos de conquista, mas as mulheres têm muito mais pudores com a variedade. Envergonham-se se agarram mais que um menino numa noite ou se mantêm vários amantes ou são censuradas por isso. Esperam que o homem se aproxime. Isto jamais é visto como machismo, mas é. A passividade na conquista é a passividade na relação.
Mas as mulheres não percebem. Por isso, defendem o modelo de casamento monogâmico atual, não fazem acordos com seus parceiros. Implicitamente, o modelo está dado: ela, romântica, deve preservar-se fiel; ele, nem tanto. É um completo otário se o fizer. As mulheres, no entanto, continuam crentes e defendem este modelo. São ensinadas assim desde pequenas, quando ganham bonequinhas para ficar em casa, enquanto os meninos ganham carrinhos, signo de liberdade de movimento, de autonomia. São educadas para não ver. E não vêem.

26 de jun. de 2006

Os tigres na cidade

Sei que é verdade: quando cheguei ali não havia cidade alguma. Apenas tigres. Brancos, pretos, laranjas. Sempre os via, caminhando devagar. Nunca corriam, mas também não eram vistos por ninguém, além de mim. Ali, na beira do lago onde os tigres bebiam água, construímos nossa casinha. Trabalhava de sol a sol, com os tigres passeando. Mais de uma vez, jurei que sorriam. E vivemos, dois ou três anos, em paz, nós, os predadores, e os tigres. Vivemos felizes.
Um dia, tudo começou, do nada. Aninha chegou em casa, machucada, com um arranhão. Jurou que tinha caído num arbusto. Desconfiei. Os arranhões eram ferimentos de tigre, tinha certeza. Saí na mesma tarde, para acertar contas. Nenhum felino apareceu. Dormi aquela noite furioso. Vivíamos em paz. Eles não podiam fazer isso.
Acordei cedo. Ana estranhou, mas acordou para me fazer o café. Não disse nada. Não falei também. Só quando peguei a foice ela perguntou onde iria. Nada respondi e saí. Fui caçar tigres. Andei quilômetros, mas nada. Voltei no fim do dia, cansado. Aninha quis saber onde fui. Nada respondi.
Naquele verão, nossos primeiros vizinhos mudaram para perto de nós. Bem que alertei: “cuidado com os tigres”.
- Tigres?
É... Os tigres tinham ferido a Aninha e ido embora, expliquei. Mas podiam voltar. Meus vizinhos não me levaram a sério. Tocaram a vida, plantando e colhendo, de sol a sol.
Passaram-se meses, sem ver nenhum tigre. Foi no inverno quando encontrei o primeiro urso, preto, imenso. Num dia de sol, ele passou calmo, ao longe, e foi beber água no lago. Comecei a me aproximar dele. Até que bebi água a menos de dois metros do urso. Ele então me olhou e, sem nenhum assombro, virou e foi embora, saciada a sede.
Em casa, nada contei. Nos dias seguintes, eles apareciam em bandos: pretos, brancos, marrons e até um preto e branco. Caminhavam devagar, até o lago, bebiam água e partiam. E só. Me acostumei e mantive o segredo. Apenas cuidava para Aninha não se afastar demais da casa.
Um dia, Ana apareceu com um enorme ferimento na perna. Contou sobre o tombo, descuidada. Repliquei que aquilo era uma pataca de urso. Fui até a cidade, comprei uma arma e voltei. O dono da loja estranhou. Disse não haver animais perto do lago para um calibre tão grosso. Pensei em como era ingênuo.
Em casa, Ana tentou me impedir de sair, de noite, sozinho. Em vão. Quase meia-noite, passei pelo vizinho e avisei sobre os ursos. Eles se espantaram, com o era previsível. Talvez comigo; talvez com os ursos. Rodei a noite toda, com uma lamparina, mas nada de ursos. Concluí que eles sabiam, sabiam muito bem que tinham feito algo errado, os urso malditos e os tigres canalhas. Voltei de manhã e dormi, por duas horas.
Quando acordei, Ana tinha partido com Aninha. Os vizinhos não viram nada. Nem Ana, nem Aninha, nem tigres, nem ursos. Não chorei. Apenas botei o pé na estrada. Dois quilômetros depois, vi as malas das duas, com as roupas rasgadas e espalhadas pelo chão.
Temi o pior e me embrenhei no mato. Andei, me arranhei nos arbustos, escorreguei e machuquei a perna. Corri tanto, cansei e, por fim, exausto, caí desmaiado. Era noite quando acordei. Ouvi vozes antes de abrir os olhos. Na penumbra, pude ver vultos humanos. Eram os vizinhos e outros homens da cidade. Com eles, Ana e Aninha. Assustados, ninguém se aproximava. À minha volta, ursos e tigres me protegiam. Do meu lado, o urso preto e branco.
Tentei explicar, mas todo arranhado e com pancadas pelo corpo, não tiveram dúvida: eu era a presa dos animais. Gritaram para que eu atirasse. Não atirei. Quando os ursos e tigres começaram a se retirar, segui com eles, até a beira do lago, onde lavei as feridas e voltei para casa, sob olhares impressionados. Os tigres partiram; os ursos também. Caminhavam devagar.
Desde então, o lugar não parou de crescer. Com a história fantástica de um lago com tigres e ursos dóceis, veio gente de todos os lugares, assustando os animais. Aos poucos, foram sumindo. No verão, foram os ursos brancos, depois o tigres brancos. No outono, foram-se os tigres negros e os ursos marrons. E, no inverno, partiram os tigres amarelos e os ursos pretos. Só o urso preto e branco ficou para a primavera triste que nos restou, escondido no quintal de casa, que dá para o lago. Todo dia, ele brinca com Aninha.
Desde que essa gente veio para cá, todo dia eu olho para a cidade na beira do lago, sinto remorso e choro de saudades dos ursos e dos tigres.

15 de agosto de 2005

25 de jun. de 2006

Pequenos projetos

Cada um de nós tem lá seus pequenos projetos. Coisinhas miúdas, talvez afazeres do dia-a-dia, pequenos planos que completam, de alguma forma, nossa vida. Temos grandes projetos, mas não vivemos só em função deles.
Regar uma flor para vê-la crescer, desabrochar e morrer (por que temos que amar o ocaso das coisas também). Plantar uma árvore, ganhar um beijo de manhã, ouvir “obrigado” de alguém especial. Arrumar a casa.
E quem vai nos impedir?
Há um amigo meu cheio de grandes projetos: ser pai, terminar a tese de mestrado, manter o casamento dele, ser professor na UFPR. Mas, mesmo deste tanto que se há para fazer e para se preocupar, ele cuida também de sempre levar um livro interessante de presente para um sobrinho que mora em Minas. Um pequeno projeto: produzir um leitor, criar o gosto pela leitura, incentivar o amor pelas palavras.
Um dia eu sonhei milhares de pequenos projetos com você. Te dar presentes no Natal, ler poemas de Camões para você, ler trechos de O pequeno príncipe, viajar contigo, te escrever cartas e mais cartas, te levar para ir me ver jogar futebol, ir te ver jogar handball, andar de bicicleta contigo, ir ao cinema ver Grandes esperanças. Servir seu chá antes de você dormir e arrumar a meia no seu pé, para você não passar frio.
Tudo em vão.
Mas se um dia você estiver por aí, sem ter no que pensar, e lembrar de mim... e se um dia você ficar pensando naquilo que nunca foi, mas poderia ter sido... e se um dia você tiver a curiosidade de saber como eu te via (e vejo)... saiba: você foi, e por não-sei-quanto-tempo ainda será, a origem e a meta dos meus pequenos projetos mais importantes.

(Carta escrita em 28 de junho de 1998)

22 de jun. de 2006

Ataque falso; defesa verdadeira

A imprensa está furiosa. Depois de tanto, de “informar” sobre os crimes e delitos dos congressistas e, sobretudo, do PT, as absolvições no plenário da Câmara não cessam. Já são quase treze, número emblemático. Os deputados cederam às pressões da mídia, quando reduziram seus pagamentos e os dias de recesso. Depois, fizeram ouvidos de mercador aos ataques da imprensa, que não cansou de chamar de pizza o resultado das votações dos processos de cassação.
É verdade que há algo de estranho na nossa democracia. Por um lado, os parlamentares não representam seus eleitores, pois o sistema, nominal, de eleição produz votos por amizade, por conhecimento, por várias razões, mas quase nunca por que o sujeito em quem se vota representa posições que o eleitor gostaria de ver representados no Congresso. Efetivamente, nosso parlamento reflete o grau de amadurecimento político do país, mas os parlamentares, neste modelo de financiamento e eleição, representam, quase sempre, quem os financia, não quem os elege, em última instância.
O segundo aspecto canhestro da nossa democracia é a presença de meios de comunicação poderosos, que não se subordinam a nada e que agem sem nenhum freio legal que os responsabilize por seus atos. Aliás, como em qualquer democracia: liberdade de dizer, com responsabilidade pelo que é dito.
Há um sistema corrupto, que envolve congresso e meios de comunicação, propriedade, em grande parte, de poucos conglomerados aliados a bancadas poderosas. Nestas bancadas, estão alguns dos mais canalhas dos congressistas, fiéis representantes dos interesses dos conglomerados de comunicação. Sem tal representação, não seria possível barrar qualquer tentativa de regulamentar a área. Não teria sido possível inventar a TV a cabo elitista que temos no Brasil. Não seria possível deixar a lei da radiodifusão comunitária ser influenciada integralmente pela ABERT (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV). Não seria possível matar projetos de menor impacto, como a Lei de Imprensa, a criação do Conselho Federal de Jornalismo e da Ancinav (Agência Nacional de Cinema e Audiovisual).
Quando a imprensa pede à população que vote com consciência, faz um discurso bonito e inócuo. Quando exige punição a tudo e todos, defende uma devassa sem regras, justiça imediata, mesmo que não seja justa. Faz um jogo de fumaça que oculta muito e mostra quase nada. Os meios não querem nenhum poder do povo sobre o parlamento, nenhum poder efetivo. E, no sistema de eleição atual, não podem também influenciar eleições proporcionais da forma como influenciam as majoritárias. Grandes jornais, como Folha e Estadão, com tiragens pífias para um país de 150 milhões de pessoas, enfrentam uma concorrência desigual com as relações muito mais próximas que os parlamentares mantêm com seus eleitores.
Apenas os melhores parlamentares, eleitos pelos eleitores mais críticos, sofrem pesadamente a interferência da imprensa. Ou seja, apenas os melhores pagam o pato e podem não voltar, por conta dos apelos dos senhores da opinião pública. Severino não é afetado. Renunciar é um bom negócio. Os renunciantes sempre voltam, pelas “mãos do povo”, como Jader Barbalho e ACM. Diz a letra de “300 picaretas”, do Paralamas: “Pra roubar, renunciar, voltar na próxima eleição”. A mais pura verdade. E, da indignação, esperem e vejam, nascerá um Congresso pior e mais corrupto que o anterior. Mais corrupto e também mais propenso a defender os interesses dos empresários da comunicação.
A imprensa vai sair assim: para a platéia, foi viril e enérgica na defesa da honestidade. Mas sua ação é inócua, exceto contra os parlamentares que tem ligação com a sociedade civil organizada, que escolhe seus representantes de maneira mais autônoma. Ficam com a fama e limpam do Congresso os parlamentares mais comprometidos com a população.
A imprensa só vai afetar, de maneira profunda, a escolha dos deputados quando ela for feita como é na maior parte do mundo: por voto em lista fechada e com regras claras de financiamento. A rejeição a partidos será elemento preponderante. Se os meios quisessem mesmo melhorar o congresso, defenderiam um sistema melhor, mais eficaz, onde os partidos respondam por seus atos e onde as crises abalem mesmo as bancadas. Mas não. Apenas atacam o que acusam de ser as pizzas do Congresso, não distinguindo cassações justas de injustas ou absolvições justas ou injustas. Depois apelam por um voto mais consciente, como se o problema fosse a população ignorante mesmo.
Nada muda; nada precisa mudar. Que fique assim, pois assim tem sido útil. Um Congresso honesto já teria feito algo para regular a área menos regulada do capitalismo brasileiro: os meios de comunicação. O ataque à pizza é cínico e falso. O compromisso da imprensa brasileira não é com a democracia, mas com a credibilidade junto aos receptores, mesmo baseada em mentiras.
A imprensa age como Iago, personagem de Shakespeare: aparenta algo que não é, enquanto trama na surdina. É corrupta. Alimenta e se escorra numa democracia corrupta. Às escuras, como Iago, defende tal sistema, enquanto defende, para a platéia, ações que não mudam nada.

20 de jun. de 2006

Parafraseando Vico

Primeiro, te achei divina.
Depois, te achei heróica.
Por fim, te achei humana.
E, agora, nem isso.

Giambattista Vico viveu entre os séculos 17 e 18. Morreu antes da Revolução Francesa, mas foi um dos pensadores que a influenciou. Bem antes de Augusto Comte, propôs que o conhecimento passava por três fases: a primeira, divina, quando as explicações eram atribuídas aos deuses; a segunda, heróica, quando a ação que move os acontecimentos era atribuída a grande líderes, grandes vultos; e a terceira, quando as explicações seriam mais humanas, próximas da realidade.
Escrevi este poema (de ódio) pensando nele e o dediquei a uma humana cujo nome começa com "Ana". Ela não merecia. Outro ser, cujo nome termina com "ana", no entanto, merece cada letra do poema.

19 de jun. de 2006

Contra a opinião do público

É provável que José Janene (PP-PR) seja absolvido da acusação de recebimento de dinheiro do valerioduto. É possível também que não. Vários aspectos particularizam o caso, seja o montante dos recursos, seja o fato de Janene estar, provavelmente encerrando a carreira, seja a fuga incessante do julgamento na Câmara. Mas, mesmo com tudo isso, há uma grande chance do pepista salvar o restinho de mandato e os direitos políticos.
Janene é um caso apenas de um processo que tem significado relevante para entender os meios de comunicação, seus poderes e suas estratégias no jogo político no Brasil. Há um descolamento entre o que fazem os deputados e os ataques da imprensa. É como se fossem mundos alheios.
Da mesma forma, Lula resiste aos ataques e segue, diante da crise político-midiática mais aguda da história da República, na liderança das pesquisas de intenção de votos e com um governo com avaliação muito positiva. A resistência de Lula, que nunca baixou de 30% de intenção de votos, mesmo nos piores momentos, foi a primeira pista: a mídia se descolou da opinião pública, que ela alega representar.
Os advogados da coisa, como diria Adorno, correriam alegar que é assim por que a população é autônoma nas suas decisões, que não é influenciada. Correriam usar o dado como forma de lavar as mãos da imprensa. Alegariam que os meios de comunicação não têm o poder de conduzir a população. Logo, nada do que façam pode ser nocivo, pois a ação final cabe, autonomamente, às pessoas. Esperto, mas falso.
Não é conhecimento secreto, está nos estudos americanos dos anos 60 e nos trabalhos de comunicação política de hoje: os meios de comunicação são mais eficazes em canalizar a atenção da população e predisposições do que em mudar opiniões e comportamentos.
Há sempre idiotas de plantão que não entendem por que as campanhas pelo uso de camisinha não produzem o efeito desejado e tantos ainda transam sem “proteção”. Não faz sentido se é tão razoável e lógico proteger a própria vida. Não falta informação, não há campanha contra o uso de camisinha. Por que, então, não é prática generalizada e leva tanto tempo para as pessoas aderirem?
Exatamente por que os meios têm poder, sim, mas um poder relativo, que se confronta com convicções e comportamentos arraigados, com a desconfiança da população sobre o jornalismo, com a seletividade da recepção, etc. Assim, a imprensa e o povo que ela sempre alega representar dialogam. Os receptores não são uma massa, conduzida pela mídia. Mas também não são os senhores dos meios, que apenas refletem a opinião do povo.
A imprensa no Brasil sempre se deu bem quando conduziu movimentos sociais com a receptividade na população, seja da fatia organizada na sociedade civil, seja da fatia sem relações orgânicas com entidades de representação política.
Assim foi no caso Collor, quando sociedade civil e imprensa caminharam juntos. Além disso, as convicções políticas dos “descamisados” que elegeram Fernando não eram tão sólidas assim, mas o resultado, sobretudo, de uma crença rasa, convicção produzida pelo marketing político.
Bem disse Aécio Neves, no início da crise: Lula não é Collor. Agora, isso está evidente. Os deputados perceberam que os jornais, telejornais e radiojornais não têm o poder de desalojá-los do Congresso. Ou, se têm, é um poder relativo. Eles voltarão na próxima legislatura, beneficiados por uma legislação que personaliza o voto. Se não voltarem, poucos serão os que estarão fora por efeito da campanha midiática. O PT, sim, como partido, será afetado. No PT, cola como ataque a todos do partido as ações de seus integrantes. Em outros partidos, não. São agremiações de indivíduos. A imprensa pode queimar um ou outro deputado. Pode fustigar o Congresso como instituição, mas não pode prejudicar os tantos que vivem na sombra, para quem, vamos e venhamos, pouco importam os apelos dos senhores da mídia para que “votem com consciência”. Lá no rincão onde Janene tem votos, 3 ou 4% da população ainda vota nele, não acredita ou não concorda ou não sabe o que diz a imprensa. Isso basta para que ele seja reeleito e para que a opinião publicada na imprensa não seja tão relevante. Para muitos, é assim.
Janene tem chance. A imprensa cassou Jeferson, assim com cassou Dirceu, contra quem não havia provas, como há contra Janene, mas não tem o mesmo poder sobre o pepista. Além disso, errou na dose, no tom, na avaliação de seu poder. Perdeu o bonde e vai ter que reencontrá-lo para se reinserir no processo eleitoral. Vai ter que recuar, para continuar exercendo seu poder, que é imenso, mas tem seus limites. Vão ter que tirar a máscara de irritação contra o Congresso, cuja parte mais suja sempre apoiou os empresários da área de comunicação. Vão ter que perder o tom afetado quando avaliam que a população é ignorante por não ouvi-la.
Afinal, os otários, no caso, são o público. E o público pode desligar a TV.

7 de jun. de 2006

Trago no peito

Trago no peito
Um coração acanhado,
Arredio,
Desconfiado.

Que de tanta poeira,
Cansou de estrada,
Desvario,
Emboscada.

Coração olha de lado,
Desconfia do perfeito,
Redondo,
Escorreito.

Mas é de tudo ou nada,
Sem medo de ribanceira,
Estrondo,
Fogueira.

Por isso,
Vez ou outra,
Arde.

Dá sumiço,
Não se encontra,
Flutua.

Sem alarde,
Tange a lua.

Já me levou tão longe este coração,
Já trouxe sensação de completude
De viver só por ele, pela sua arritmia,
Pela dessimetria, distorção que ilude.

Agora não tem jeito.
Meu coração não pensa,
Só acha que compensa.

E o sigo, tolo e sábio.
Meu coração é hábil,
Meu dom, meu defeito.

07/06/2006

4 de jun. de 2006

Na escuridão do casulo nasce a borboleta

Em homenagem a meu amigo Ivan, que é fã de Ito Ogami, como eu.

Mais de uma vez, repeti, para me convencer ou para convencer minha ex-namorada, que as pessoas não mudam tanto assim. Era o argumento para explicar por que éramos inviáveis. Tive que mudar, profundamente, para deixar de acreditar nisso e acreditar mais no ser humano.
As pessoas mudam. Por vezes, lentamente, ao longo da vida. Por vezes, tentam preservar coerência e petrificam tudo, inclusive os traços negativos de caráter. Por vezes, as pessoas criam estereótipos de si mesmos e se apegam a eles, como quem precisa de uma identidade, qualquer identidade. Apesar disso, as pessoas mudam.
Há duas formas como as pessoas mudam que são as mais comuns. A primeira, em traumas ou emoções fortes. A morte muda as pessoas, seja de seres amados, seja por terem estado perto demais da morte. A paternidade e a maternidade mudam as pessoas, que jamais, antes, praticaram o amor incondicional e, de repente, amam um ser que nem as reconhece, de início. O casamento muda as pessoas, sobretudo os homens. A morte da minha tia, a Lia, me tornou mais afetivo, para o resto de minha vida.
A segunda forma é mais lenta, em jornadas de conhecimento interior e de resolução de contradições internas. São como o casulo para a lagarta. Quem está no casulo, na escuridão cercado de fios de seda, não percebe a luz lá fora. Por vezes, nem percebe que está mudando. São como a borboleta que esquece que foi lagarta. Na escuridão, é normal ficar confuso, pois o processo é lento e cheio de mudanças que a lagarta não entende direito, mas faz força para entender. Eu passei por isso. Meu amigo Ivan passa por isso.
Para ambos, foi o amadurecimento que leva a aceitar e querer viver relacionamentos estáveis, assumir responsabilidades, não fugir dos planos, nem do futuro. Alguns homens passam por isso. Outros casam sem deixar de pensar como solteiros. Normalmente, acabam separados.
A borboleta se transforma no escuro. A borboleta é símbolo de transformação. Mas só quando se vê borboleta, entende o casulo e percebe a escuridão como um processo, não como a condição da vida. Ou seja, só quando, depois de uma longa jornada, nos vemos diferentes do que éramos, percebemos que estávamos trilhando um caminho, aprendendo algo, amadurecendo.
Tateei muito no escuro, mas agora me sinto pronto. Já tive medo do vento e, como a lagarta, me apeguei a uma folha, um caule, um tronco. Agora, quando o vento bater, vou com ele. Hoje, acredito que as pessoas mudam. A borboleta vê muito mais que a lagarta.

24 de mai. de 2006

Além da casca

Há certos filmes no cinema que parecem falar de algo, por vezes algo simples, algo banal. Alguns, como 007, são isso mesmo, são só o que aparentam na superfície. Outros não. Shyamalan é um diretor especialista nisto. Seus filmes muitas vezes são mal recebidos pelo público, por que são lidos de uma forma, quando são outra coisa, completamente diferente.
Dele, apenas Sexto Sentido agradou o público, por que a aparência do filme, em si, satisfaz. Quem não se impressiona com o final, quando o personagem de Bruce Willis se descobre, ele, o espírito, que não se percebia morto, apesar de tantos sinais palpáveis disso? Sexto Sentido é um filme sobre espíritos? Não. Usa deles, é verdade, para falar de outra coisa: autoconhecimento. A ignorância de si do personagem principal é tal que a audiência também ignora sua condição. Ele, psicólogo, deve conhecer os outros, mas não conhece a si mesmo.
Shyamalan segue pela mesma linha, parecendo falar de uma coisa, mas falando de outra em Sinais, com Mel Gibson. Parece ser um filme sobre ET´s, sobre a invasão do planeta, anunciada por sinais nas lavouras de um pastor descrente. Os “sinais” do título seriam isso. Outro erro. Os sinais são os sinais de Deus. O personagem principal é um pastor que perdeu a fé, por causa da morte da sua esposa. Ele se sente abandonado por Deus ou desconfia que Deus não exista. Por isso, não entende as últimas palavras da esposa nos seus braços. Ele não vê os sinais de Deus, até uma das últimas cenas, quando um ET invade sua casa e pega seu filho. Neste momento, as palavras finais da esposa fazem sentido. Sinais é, acima de tudo, um filme sobre fé. Sobre como a falta de fé cega as pessoas para os sinais divinos.
E, por fim, A Vila, do mesmo diretor, vai pelo mesmo caminho. Parece um suspense, um filme ao estilo da superfície de Sexto Sentido. Quando o monstro que cerca a vila se revela é uma decepção. Como suspense, o filme é um fracasso. Mas nem suspense ele é. É um drama, sobre isolamento, sobre a preservação de valores morais. É uma espécie de antídoto contra as pragas do nosso tempo. Pode ser, como afirmaram alguns críticos, metáfora de um Estados Unidos que ignora o externo. Esta interpretação me parece mais forçada.
Sixteen Blocks, em cartaz atualmente, faz o mesmo. Quem o ler como uma aventura apenas vai se decepcionar com o filme. Na verdade, ele conta como um policial, escoltando um prisioneiro que deve depor no tribunal, muda de postura, se arrepende de coisas que fez, em menos de duas horas. O filme fala sobre a possibilidade do ser humano mudar. Sua mensagem final é clara. Quem não entender isso, não entende o comportamento do personagem principal, interpretado por um Bruce Willis barrigudo.
Este eixo central dos filmes é o que chamamos de argumento. É o eixo de ação. Às vezes, aqueles resumos dos jornais explicam direitinho o argumento de um filme. Mas, na maioria dos casos, ficam na casca. Acreditem: Sixteen Blocks quer dizer, para todos, que um ser humano muda, muito. Mesmo que para isso tenha que passar por experiências dolorosas ou intensas.
Chuck Berry e Barry White são exemplos disso. Eu sou outro.

22 de mai. de 2006

Mau jornalismo no horário nobre

Imagino que a audiência nem perceba. Mas o jornal nacional é capaz de verdadeiras aulas de mau jornalismo, falhando no mais básico da profissão: a checagem das informações. No processo de transição da prefeitura de São Paulo, no começo de 2005, a ex-prefeita, Marta Suplicy, do PT, deixou de pagar, no final de dezembro, uma parcela de cerca de R$100 milhões da dívida da cidade com a União. José Serra, do PSDB, reclamou. A assessoria de Marta confirmou o não pagamento, mas alegou que faltou dinheiro por que o governo de São Paulo, do governador do PSDB Geraldo Alckmin, havia depositado uma verba que cabia à prefeitura em juízo. Isso significa que o dinheiro estaria indisponível até que a pendência jurídica que envolvia os recursos fosse sanada.
O Jornal Nacional contou tudo isso. Aparentemente, um primor de jornalismo. Eis o equívoco. A primeira coisa a fazer diante da alegação de Marta era verificar se havia o tal depósito de fato e se, com ele, a prefeitura teria perdido a capacidade de pagamento. Se houvesse o depósito, é necessário saber o porquê. Eventualmente, o Governo do Estado podia estar jogando com isso para desgastar Marta. Ou não. A audiência não ficou sabendo disso. A notícia se reduziu a “fulano disse X, mas Beltrano explicou X por Y”. Cabia ao jornalista chagar a informação e fazer a matéria completa.
Os jornalistas da Globo estão longe de ser amadores. Muitas vezes, estas gafes são por hábito. Mau-hábito, diga-se. A preguiça profissional é providencial. Fazer jornalismo de verdade dá trabalho. Deixá-lo assim é mais fácil e mais espetaculoso. Fazer mau jornalismo é um hábito da TV. Ela precisa converter a política neste jogo de disse que disse, neste emaranhado onde não se sabe a verdade. A TV busca sempre, na declaração dos políticos, aquilo que converta política num ringue. Se o público percebe a política assim, a TV tem parte de culpa.
A notícia é mais saborosa quando a polêmica é intensa. Os pequenos lapsos jornalísticos também permitem construir uma imagem que tem pouca relação com os acontecimentos. Isso é muito conveniente quando o jornal é um instrumento de poder. Jornalismo bem feito é algo que a Globo faz de vez em quando, para dizer que sabe, para afirmar que o resto tem o mesmo apuro. Saber, sabe mesmo. A questão é se quer.

19 de mai. de 2006

Beco

Um dia,
te encontro num beco escuro
e te pego,
te levo,
te engulo.

Pelos teus neurônios,
elétricos,
teu corpo navego.
E perdes o rumo.

(1993)

14 de mai. de 2006

Amor e posse

Certa noite, um alado bateu na janela, desesperado, como se quisesse entrar. Era um filhote de canário, desnorteado. Por zelo, abri a janela, o deixei entrar, o apanhei e o coloquei numa caixa de papelão. Pretendia soltá-lo, no dia seguinte. Não imagino a hipótese de prender um pássaro, para meu deleite, de encher-lhe a gaiola de comida, água e toda sorte de mimos que poderia chamar de amor. Tirar-lhe a liberdade.
Como o pássaro, não sei porque uma mulher queira entrar na minha vida. Provavelmente porque, como o filhote de canário, não veja os obstáculos. Por vezes, abro a porta. As pessoas, vez sim vez não, abrem a porta. Depois, enjaulam o pássaro. Eu não.
A isso que chamam de amor pelo outro, paixão, ou termos intercambiáveis, eu chamo de egoísmo, amor a si mesmo. A expressão externa mais evidente deste comportamento é o ciúme possessivo, equivalente perfeito ao amor que se sente pelo pássaro na gaiola.
Na gaiola, os pássaros são objeto de um amor terno e honesto. As pessoas juram que amam sinceramente, mas a primeira coisa que fazem com o objeto de seu amor é tirar-lhe um dos bens mais valiosos: a liberdade. Isso gera brigas violentas e confusões trágicas. Amar, na concepção atual, é trocar a própria liberdade pela liberdade do outro. É uma noção estranha, em franca solidificação. A juventude do século XXI, esta mesma que resgata o movimento pelo casamento virgem e usa alianças de compromisso muito mais que seus pais, é o agente ou objeto de uma contra-revolução nos costumes. Enquanto a contracultura afirmou o direito do pássaro voar, esta juventude pratica o amor via jaula. Nossos jovens não entenderam nada. Ou vivem, como é típico nestes dias, presos ao presente, como se tudo fosse como é e sempre tenha sido assim.
A posse sobre o outro é profundamente masculina. Os homens, pelos séculos e séculos, têm tratado as mulheres como objeto de posse, normalmente sem oferecer nenhuma contrapartida. O mundo mudou. As mulheres reivindicam seu direito. Por isso, são veementes em afirmar seu direito à posse sobre os homens. Elas não lutam pela própria liberdade, mas pelo direito de possuir os homens. Os movimentos de mulheres dos anos 60 estão liquidados. Elas querem direito iguais e, assim, reafirmam e reforçam um comportamento, no limite, desumanizador.
Pássaro não são seres humanos. Se tiverem opção, voam, nunca ficam. Pessoas ficam, por escolha. Não possuímos ninguém. Elas escolhem permanecer ao nosso lado, e escolhemos ficar com elas. Podemos resolver trilhar outro caminho quando quisermos. Por isso, o outro deve nos respeitar. Mas somos livres, tragicamente livres. Isso torna a vida muito incerta, mas é indispensável.
É verdade que é necessário cuidar de quem amamos, deixar claro que queremos que fique, dar-lhe conforto afetivo. Permanecer ao lado dele(a), mesmo nos piores momentos e dar-lhe carinho, quando necessário. Saber amar, sem oprimir e sem parecer desleixado é uma arte, muito difícil, que só os anos ensinam.
Agi assim com o pássaro. Queria, por egoísmo e, talvez, por amor, que ele ficasse. Por isso, cuidei dele. Mas, no dia seguinte, levei o pequeno canário para fora e, perante o sol, abri as mãos, doendo por dentro. Para minha surpresa, ele ficou ali, por quase cinco segundos. Tive a esperança de que ele tivesse escolhido ficar. Depois, voou. Talvez eu perca muitos assim. Mas não posso exigir nada, apenas amar e esperar ser retribuído. Não os possuo. Se os amo, abro as mãos. Se o pássaro entendesse destas coisas, poderia voltar tranqüilo, pois jamais lhe negaria seu direito mais básico de voar. Mas, como os jovens, ele não entende destas coisas de escolha e liberdade.

10 de mai. de 2006

Potinho de felicidade

Há um poema que atribuem a Borges que diz:

Se eu pudesse viver novamente a minha vida,
trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito,
seria mais relaxado.
Seria mais bobo do que fui;
na verdade encararia muito poucas coisas com seriedade. (Instantes)

É sábio, seja de Borges ou não (talvez, para ele próprio, esta não fosse uma questão relevante). Mas viver assim, levando a vida menos a sério, nem Borges conseguiu. Meus problemas de hoje me espantam, me assustam, me amedrontam. Amanhã, rirei deles, como rio das minhas preocupações de criança. Nenhum problema é pequeno demais se quem tem que enfrentá-lo o teme. Por isso, não menosprezo as dificuldades de ninguém. Cada um tem as suas dores; cada um tem seus problemas gigantescos.
Nada causa mais problemas irreais que os relacionamentos amorosos. Qualquer coisa, se vem do ser amado, é imensa. Qualquer sinal é uma tempestade. Nunca erramos tanto quanto quando estamos enamorados. E nada causa mais alegria ou tristeza.
Viver como na poesia permitiria sorrir mais, levar os amores menos a sério. Mas quem está no meio da vida não tem idéia de como vai rir de tudo aos 85 anos, idade de Borges, quando escreveu Instantes, se é que o escreveu.
O amor traz desgraças de fim de mundo e, nestas horas, é bom achar algo para te fazer rir. Pessoas, se possível. Há, sim, seres humanos que são tão especiais que fazem o poema parecer mais real, mais possível. Cada um tem os seus escolhidos, seres que são como potinhos de felicidade. Do lado destes seres, o mundo parece mesmo mais leve.
O amor não é mau. Por vezes, ele nos pega e passamos a amar quem até pouco tempo nem sabíamos existir. E quando este ser vai embora, sua ausência, que nunca antes tínhamos sentido, passa a ser pesada, dura. Barthes chama isso de presença de uma ausência. Não conheço definição melhor. Nestas horas, é preciso diminuir os problemas, achar quem nos faça sorrir. Rir de nós mesmos, dar menos valor às angústias e tentar respirar. Ler Borges, como um mantra.
Tem dias que chove. Chove muito, uma chuva linda e triste. Nos dias de chuva, às vezes surge um arco-íris. Nunca acreditei no pote de ouro no fim do arco-íris. Mas foi nos piores dias de chuva que encontrei um potinho de felicidade.

8 de mai. de 2006

O maravilhoso mundo do orkut

Somos senhores das máquinas. Somos senhores do orkut. Lá, somos livres e pintamos, em cores vivas, a imagem do que pensamos que somos ou do que gostaríamos de ser. Todo mundo é bacana, descolado, bem-humorado, in no orkut. É uma fábula do mundo em conexão, da multiplicação dos mecanismos de exposição individual, da proliferação de personalidades virtuais. É o contrário da sabedoria oriental milenar: o sábio fala; o mais sábio, cala.
No orkut não. Por que não contar tudo de bom que somos e até o que não somos. Por que não colher os frutos, se fazem isso todos os dias na TV, nas exaltações das virtudes dos artistas. Se eles podem, eu também.
É um traço da nossa sociedade, sociedade da exposição. Ou do espetáculo, para os que gostam de Guy Debord. Os outros podem te definir de um jeito diferente do que você imagina. Para que ouvir críticas, se elas podem afetar sua auto-imagem, te fazer ver defeitos e te fazer melhor do que você é. Melhor ser um babaca feliz.
Há os que sabem bem disso e buscam, mesmo numa máquina de exposição, se preservar, não se entregar. Lutam contra o orkut. Há, no limite, os que cometem orkuticídio e matam seu perfil. Há os que apagam os scraps e se protegem. Há formas de dar um uso mais decente ao dispositivo.
O maravilhoso mundo do orkut é assim por que é. A máquina tem seus limites, tem suas intenções, como ensina Vilém Flusser. A máquina tem seu programa. E o programa limita nossa ação, nossa liberdade. Não somos senhores do orkut. O orkut, de certa forma, é nosso senhor. Só fazemos o que ele nos permite fazer. Se podemos criar um perfil muito pessoal, este perfil está limitado pelo programa da máquina. Confrontamos nossa intenção com a intenção do orkut. Fazemos, com a máquina, apenas o que a máquina está programada para fazer.
Definimos o que somos por comunidades, amigos, scraps, depoimentos, os dispositivos do programa do orkut. Tudo isso configura um mundo maravilhoso, onde o elogio, fruto da falsidade típica da nossa cultura, é regra. E ainda temos o poder de apagar tudo que nos desagrade. Mas as pessoas normalmente falam bem de nós, ressaltam o superficial, elogiam a casca do que somos. Vi muito poucos depoimentos que dissessem algo relevante sobre alguém. Há, evidente, alguns assim, mas são raros. De resto, são apenas gestos, que expressam mais a popularidade virtual que a popularidade real ou qualquer coisa que defina, de verdade, as pessoas.
A máquina conduz a isso, aos elogios da superfície. Quem se baseia no orkut para definir alguém deve fazê-lo como Freud procedia com as fissuras do inconsciente. São indícios reais, mas é preciso entendê-los mais a fundo para saber o que significam.
Minha hipótese é que o maravilhoso mundo do orkut é tão raso quanto um pires. Repete outros traços da sociedade rasa em que vivemos. Repete a superficialidade dos shoppings, da afirmação de si pelas roupas que se veste (pelo preço, sobretudo), a superficialidade das amizades de balada e dos amores noturnos, quando as pessoas são mais prêmios que pessoas.
Quem sabe disso pode viver bem no orkut, sem se tornar escravo da máquina. Quem acredita nestes índices falsos de popularidade e acredita que tudo significa algo ou vai ter que arranjar um jeito de viver na falsidade para sempre (como as madames da alta sociedade) ou vai descobrir, em breve, que isso importa menos.
O trágico do mundo do orkut é que, em alguns casos, ele produz demência, ele se apresenta mesmo como uma fissura do inconsciente que revela uma doença psicossocial. Há quem adoeça seriamente. Pobres diabos. Pobres crianças. A vida real é muito diferente. E não é perfeita. É cheia de obstáculos, exige muito mais para se conquistar respeito. Exige saber que as pessoas que te amam são as que te criticam, não as que te elogiam. Por que, de longe, vemos só virtudes. Só quem está perto vê os limites de alguém. E só quem te ama mesmo quer te ver melhor. Os demais, não. Até por que eles podem te trocar facilmente, não precisam te entender nem te ajudar a superar seus problemas.
Pobres filhos do orkut. Vivem na pior prisão, por que é uma doce prisão onde parecemos mandar. Mas a máquina só faz o que está programada para fazer. A prisão só parece um reino de liberdade para ser mais eficiente, para obter uma doce submissão, um aprisionamento voluntário.
O orkut é um Truman Show. Truman era feliz. Ignorante e feliz.

2 de mai. de 2006

Uns...

A chuva tem seus prodígios. Agorinha mesmo, pouco antes d’eu ligar o computador, meu bairro vivia um blecaute momentâneo, por algum pequeno acidente causado pela chuva, creio eu. Sem eletricidade para ligar seus aparelhos domésticos e, principalmente, a TV, as pessoas saíam à janela. Tão bonito de ver! Parecia cena do interior, todo mundo contemplando tão belo fenômeno pluvial, mera condensação do vapor d’água. Por um instante, a chuva revivia seus dias áureos, antes da comunicação de massa, e era campeã de audiência.
Diz Drummond, você há de lembrar, somos apenas uns homens. Parece coisa de ecochato, mas estas besteiras tão básicas põem a gente comovido prá cachorro. Como outro dia, quando um amigo e outro não-sei-quem jogavam na beira da praia. Eu olhando o mar, imensa, definitiva testemunha de nossa insignificância, a minha, a sua, a de toda a raça que se julga filha do deus-todo-poderoso, do criador de todo universo e nosso arquiteto e protetor. Eram apenas dois seres, num planetinha azul, pequenininho, numa galáxia pequenininha, com uma solzinho de quinta grandeza, representantes de uma raça com mais de cinco bilhões de iguais, jogando um jogo tolo baseado em bater numa bola de borracha de um lado para o outro, com duas raquetes de madeira. Um deles tinha um pouco mais de técnica do que outro, mas no que isso faz diferença. É ínfimo demais neste planetinha azul, que dirá em toda a galáxia.
Somos apenas uns homens e a natureza traiu-nos. O que temos de relevante é quase nada (só esta carga genética que nos diferencia). Mas somos a medida das coisas, eu e você. E olho o universo prá dentro, neste imenso mundo que chamamos identidade, subjetividade, alma. Aqui, todo dia eu faço fogo e destruo um planetinha qualquer para fazer uma nova estrela - talvez você pondere que não se fazem estrelas de planetinhas, mas reporte-se ao seu mundo. No meu, posso tudo. Neste universo, tão grande quanto o outro, você vive. E toda vez que olho para dentro, lá está você, com sua voz tonitroante. Cada palavra, cria uma montanha; cada significado arrasta miríades de corpos celestes.
Tu pairas sobre as águas e nem sabes que é deste mar que retiro o meu sal.

(carta escrita no início de 1997. Depois, criei outras deusas e as deixei passar, por que só eu mando no meu coração)

28 de abr. de 2006

Canção para uma mulher inexistente

Tu não sabe,
Tu só entende a linguagem dos presentes.
Só percebe a casa arrumada
E perfumada
E purificada
Para o culto de receber-te

Tu não compreende,
Tu só considera os afetos do suborno.
Só valoriza este universo
Onde és poente,
Onde és nascente
E me dói entardecer-te

Toda esta pobreza que é viver,
Em ti,
Se torna ainda mais depauperada.
Então meus dias, que não são meus,
Anulam-se, canção calada,
Em viver-te.

Entretanto, insisto.

Assim, talvez, quem sabe,
Na data de um incerto dia,
Tu, que és atéia
E cética,
Desconfie da existência,
Quase arredia,
De um gnomo,
Nesta métrica.

E já não fará diferença,
Pois não sou nada,
Além da negação
De mim mesmo.
A um só tempo presa
E emboscada.

Começo em ti.
Em ti, termino.
Mas, saiba
(e perdoe minha desobediência),
Não sou gnomo,
Nem fada.
Sou um demiurgo em sua lavra.
Se só existo para mover teu mundo,
Tu só existe na minha palavra.

26 de junho de 1998