28 de abr. de 2006

Canção para uma mulher inexistente

Tu não sabe,
Tu só entende a linguagem dos presentes.
Só percebe a casa arrumada
E perfumada
E purificada
Para o culto de receber-te

Tu não compreende,
Tu só considera os afetos do suborno.
Só valoriza este universo
Onde és poente,
Onde és nascente
E me dói entardecer-te

Toda esta pobreza que é viver,
Em ti,
Se torna ainda mais depauperada.
Então meus dias, que não são meus,
Anulam-se, canção calada,
Em viver-te.

Entretanto, insisto.

Assim, talvez, quem sabe,
Na data de um incerto dia,
Tu, que és atéia
E cética,
Desconfie da existência,
Quase arredia,
De um gnomo,
Nesta métrica.

E já não fará diferença,
Pois não sou nada,
Além da negação
De mim mesmo.
A um só tempo presa
E emboscada.

Começo em ti.
Em ti, termino.
Mas, saiba
(e perdoe minha desobediência),
Não sou gnomo,
Nem fada.
Sou um demiurgo em sua lavra.
Se só existo para mover teu mundo,
Tu só existe na minha palavra.

26 de junho de 1998

27 de abr. de 2006

Depois...

Depois, o amor passou
E quis saber onde ele fora
Mas, sem rastros, era depois.

Depois de tudo, o nada
E de nada fiz pó
Do pó fiz estrada.

Ah, se não houvesse depois
Se o futuro congelasse
Se eu não caminhasse
Não matutasse por dois.

Seria fácil pensar depois
Esquentar a mão gelada
Hibernar longa madrugada
Esquecer que você foi...

Ah, você foi
Foi sim...
Mas já foi
Te chamava minha amada
Mas isso foi antes de depois.

25 de abr. de 2006

Pobre menina má

Suzane Richtofen é má. No dia 31 de outubro de 2002, dia das bruxas, colocou em execução um plano maquiavélico: abriu a porta de casa para que dois jovens, os irmãos Cravinhos, assassinassem seus pais. Suzane tem que pagar, tem que ser julgada e condenada, como aconteceria a qualquer cidadão.
Mas Suzane é uma pobre menina também. Uma pobre menina má. Seu crime ficou famoso não só pela crueldade, mas também por que a violência escadaliza seletivamente. Pelos olhos da imprensa, a violência na periferia tem que ser cruenta para escandalizar. Assassinatos vulgares, mesmo duplos, não chamam a atenção quando o assassinado é pobre, mesmo se vítima de plano ardiloso.
Suzane pensou que ia escapar livre, simular um roubo e tudo iria se resolver. Estava enganada. Vai ter que enfrentar a Justiça com todas as suas virtudes e seus defeitos. Mas, com certeza, Suzane nunca imaginou ter que enfrentar os meios de comunicação. A menina má se tornou uma pobre diaba do show midiático.
Sua condição de classe média logo lhe impôs a mídia como componente central do desenrolar do seu caso. O clamor por justiça da opinião publicada foi voraz, desde o princípio. Nesta hora, seria melhor ser pobre, por que a opinião publicada não liga muito para aqueles que ela julga representar.
O escândalo explorado pelo Fantástico ao gravar uma conversa privada do advogado com Suzane é só um capítulo a mais do show. Suzane quis ser a mestre do picadeiro. Acabou virando aquele palhaço que sempre apanha para o público rir. Foi vítima de um traço da mídia que Lazarsfeld, nos anos 60, já apontava: a tendência moralizadora da exposição midiática dos desvios e delitos sociais. Por vezes, porém, a grita ganha contornos de falso moralismo. É bem esse o caso.
Neste momento, a ação midiática por punição exemplar, a revolta contra a liberdade de Suzane e a indignação contra a falsa emoção da moça são apenas respingos de uma prática fascista: a condenação sumária, a extinção do Estado de Direito. Acontece sempre. A mídia age como quem conduz a massa louca por um linchamento, neste caso, linchamento midiático. Interfere, com seu tempo acelerado, em outro campo, onde o tempo da mídia produziria injustiça.
Os arautos da opinião publicada poderiam se rebelar contra a morosidade dos tribunais, mas não contra a preservação do direito básico de só ser preso quando condenado ou por prevenção. Querem Suzane morta na cadeia, pela felicidade do povo. A OAB abre processo contra o advogado, como se o caso fosse de direito, mas não é. É de comunicação, coisa que a OAB não pode julgar. O advogado pode ter ferido o código de ética dos RP, dos jornalistas, do Conar, qualquer um destes, mas não o código do direito, por que não instruiu Suzane na condição de advogado. Advogados não são assessores de mídia.
São cenas de uma ação violenta e arbitrária. No curto prazo, parecem produzir justiça. No longo, ensinam que a vingança rápida é mais eficiente. Façamos então justiça já. Correndo, aliás, por que o show não pára. Pouco importa Suzane e seu crime. A mídia vai esquecê-la logo que o público pare de rir do palhaço que apanha de todo mundo.
Pobre palhacinho mau.

23 de abr. de 2006

Bleeding heart

Bleeding heart é um dos Florais da Califórnia, similar aos florais de Bach. É conhecido como um dos florais de desapego. É o que te dão para tomar quando o amor te suga, te entristece, te faz viver para ele, egoísta que é. Sua função é combater “possessividade ou co-dependência emocional, especialmente perda de ente querido, separações e melancolia nos relacionamentos amorosos”.
De certa forma, nestas horas, os amigos também te dão bleeding heart. Poucos te aconselham a quebrar a cara, amar até não ter mais jeito, lutar feito tigre encurralado pelo amor. Esquecer é melhor.
Mas o amor é este jogo, esta ciranda. Amo quem não me ama, quem me ama me persegue e tento fugir. Assim, somos e fazemos os outros infelizes. Algumas vezes, raríssimas, dois seres se olham e se encontram, desde o princípio. Quando acontece, são dois seres sortudos. Na maioria das vezes, diz a sabedoria, amor se constrói, não vem do acaso.
Aconteceu comigo. Uma única vez. Tive muita sorte, como sei que ela também. Acontecer duas vezes é quase um milagre. E quando isso acontece, o resto parece besteira. Só alguém muito racional não valorizaria isso. Os começos são solenes. No amor, são demolidores.
Só o tempo para fazer a cabeça funcionar e paralisar o coração. Só o desgaste nubla o amor e faz parecer que ele morreu. Mas, tenham certeza, o impulso, construído, às vezes, em alguns minutos, não passa. Ele fica ali, latente. Pode parecer esquecido, mas está ali. Isso é fantástico. De início, os enamorados se prendem a um feitiço. Depois, a uma história. O feitiço desvanece. A história fica.
Se acontecer com você e você tiver que esquecer, vão dizer palavras sábias. Vão dizer que o amor acontece de novo, que é possível esquecer, que o futuro é só o que existe. Vão te dar bleeding heart. Pode ser mesmo. Outro amor, outra história, diferente, maior ou menor, mas diferente. E qualquer hora você vai poder sorrir, ao olhar para o amor que deixou para trás, com o coração sangrando.
Tudo isso é sábio. Mas a vida é uma só. Um amor não vivido é uma vida que você não sabe como seria. Isto vai sempre te perseguir: a vida que você não viveu. Conforme-se. Talvez você tenha feito a melhor escolha. Mas você nunca vai ter certeza.
Eu, por mim, pararia no primeiro amor real e no mais forte, na primeira paixão perfeita. Sei que muitos não terão nem a primeira. Então não vou contar com a sorte. Não quero ficar pensando em como seria minha vida se não fosse ou se fosse isso ou aquilo. Parar no primeiro me daria certeza, tranqüilidade, um coração em paz. Já tive sorte mesmo de ter um.
Mas a vida é como uma ciranda, e, às vezes, o cavalinho te atropela. Ando tomando bleeding heart, mas nada me convence que o outro caminho não seria melhor.

Senhor Devaneio

Este é o primeiro conto que escrevi com um personagem tigre. Nem lembro, hoje, por que fiz isso. Mas gostei da idéia.

Depois perdi a data precisa e tudo ficou enevoado. Mas a sensação da sua chegada não esqueço. Bateu leve seu toc, toquear. Duas vezes. Abri sem pressa. Polido:
- Pois não?
Ele nada respondeu, nem sequer disse seu nome. Não sei como quase desde sempre eu soube como o chamar. Me olhou com seus olhos profundos de tigre e unhas afiadas e dentes pontiadudos. Aconchegou-se em todos os recôncavos da casa, pelas almofadas da sala, nas brechas entre o fogão e a pia, no vão que separa a cama da parede, onde se escondem os monstros na infância. Ocupou, por fim, todos os espaços, cada interstício da minha vida. Não havia lugar para onde olhar sem o ver, com os vidrinhos que trouxe com uns líquidos coloridos. Comecei a ter a sensação de que não olhava mais seus olhos, mas, não raras vezes, através deles.
Eu o chamava de Senhor Devaneio. Tentei perguntas. Nunca me deu respostas. Não lembro nem mesmo de ter dirigido a voz para mim. Silente, fazia matéria de cada palavra que eu dizia, de cada pensamento ou desejo. Tudo misturava, na cozinha, com os líquidos coloridos que trouxe dentro de uns vidrinhos.
E foi estraçalhando, um a um, todos os móveis da casa. Pintou as paredes com cores mutantes. Entrelaçou hoje e amanhã. Levou-me, mas eu não sei bem para onde. Um dia, bem nos primeiros dias, olhei as paredes coloridas e murmurei teu nome:
- Drieli!
Acho que ele ouviu. Jogou a mesinha da sala pela janela. Revirou minhas gavetas e todas as minhas cartas, até as dos envelopes especiais. Cortou minhas reproduções de Van Gogh e Picasso. Quebrou a cama e pôs o colchão na sala. Enrolou o tapete de lã de carneiro. Me encharcou de perfume, de vinhos... Trocou as caixinhas dos meus CD’s. Alterou a ordem dos meus livros. Desmarcou os compromissos da minha agenda.
Zanguei, olhei dentro dos seus olhos com meus olhos de tigre. Senhor Devaneio fingiu que estava tudo bem e me sentou na minha poltrona de leitura, toda arranhada, virada para a parede. Desde que ele ouviu seu nome, por algum motivo, passou a destruir toda a materialidade da minha vida e a descolorir o preto e o branco. Eu também não liguei mais para a casa. Sempre fugia pelas janelas e voltava, amedrontado, pela porta. Ele sempre demorava a abrir.
Um dia, por fim, a porta estava aberta. Pelo vão, vi a casa em ordem (como eu gostava antes de esquecer). Todos os móveis no lugar. Na cozinha, só um resto de passado transbordado.
Senhor Devaneio tinha ido embora. Desde então, não consigo lembrar seu nome, Drieli.

8/02/99